João
Martins Pereira, conhecido há já longos meses dos leitores da “VM”, graças aos
artigos que aqui publicou sobre economia, provocou a atenção dos portugueses ao
demitir-se de Secretário de Estado da Indústria do IV Governo Provisório: de
facto, fez acompanhar essa demissão de uma carta ao Conselho da Revolução em
que denunciava alguns dos mais graves problemas que tornavam inoperante uma
acção política consequente neste país. Essa carta iniciou, como se sabe, uma
série de documentos fundamentais acerca da situação portuguesa e de que são
exemplo os de João Cravinho e Jorge Sampaio, primeiro, e pouco depois o dos
“Nove” e o do COPCON.
Pelo seu
interesse, transcrevemos alguns passos mais significativos de uma entrevista
recentemente publicada pelo jornal francês Libération.
M.P. – Depois do 25 de Abril, pensou-se sempre –
ou, pelo menos, actuou-se sempre – como se fosse possível tratar a economia em
termos puramente económicos. Imaginara-se, assim, as mais diversas espécies de
medidas económicas clássicas, muito clássicas, que não tiveram a menor
eficácia. Porque nunca se ligou a acção económica à acção política, nem se
conjugou o que se tentava fazer no domínio económico com a acção quotidiana,
concreta, do Governo, dos partidos e das massas. A ponto de, ainda há poucos
meses, se repetir na televisão que era preciso “investir a todo o custo”... Hoje,
mesmo nas empresas onde os trabalhadores estão pouco politizados, já ninguém
quer ouvir falar de lucro, há um forte sentimento anticapitalista... A
arrancada política das massas, a colocação em causa da hierarquia na empresa, o
ataque aos quadros surgiram precisamente porque as massas estavam pouco
politizadas, reagindo espontaneamente contra a opressão, tão bem incarnada pela
PIDE ou pela GNR como pelo chefe ou pelo
patrão... Assim, é difícil, depois de um tal movimento, poder ainda
conquistar a pequena burguesia, nomeadamente, os pequenos empresários
industriais. Em contrapartida, será ainda possível conquistar camadas
importantes de pequenos agricultores, pois estes foram menos visados pela
propaganda ideológica. É muito difícil “ganhar” para a revolução um pequeno
empresário capitalista que, durante meses, foi tratado de “fascista” e
“reaccionário”. Mas é possível transformar uma mentalidade de pequenos
rendeiros, caseiros, gente que vive num sistema de relações económicas pré-capitalistas
e levá-los a defender um projecto de socialismo.
Que camadas
poderiam ser conquistadas para a revolução, e com que tipo de medidas?
M.P. – Digamos que se poderiam ganhar algumas
camadas da pequena burguesia. Entendo por pequena burguesia os pequenos
empresários comerciais ou industriais, e bem assim toda uma camada de trabalhadores
empregados e funcionários tocados pela ideologia pequeno-burguesa de consumo
mas que continuam a ser assalariados do Estado, das companhias de seguros, da
publicidade, etc. Aqueles a quem se chama, de facto, as massas populares (embora
não constituam, nem o proletariado industrial nem o proletariado agrícola).
Poder-se-á fazer jogar neles o reflexo do trabalhador assalariado e fazer deles
aliados. É indispensável e, creio, possível. Mas, no que se refere aos
empresários não agrícolas, é muito difícil. Penso que se vai tentar, a curto
prazo, conquistar as camadas pequeno-burguesas não urbanas, através de toda uma
série de medidas económicas, talvez vagamente demagógicas, mas que podem
desemprenhar um papel importante.
Prevê-se assim uma acentuada redução do preço dos adubos, a compra de
todo o vinho em stock... É um encargo financeiro enorme, mas que pode ter
consequências políticas positivas. Estas medidas permitirão uma moratória de
dois ou três meses. Causa de importância considerável, sobretudo no Norte, onde
a situação está a tornar-se realmente explosiva e onde a agitação pode atingir
o sul, sem falar das consequências nas Forças Armadas. Mas esta “moratória”
deve ser utilizada para definir uma política... política e uma política
económica, pois irá prolongar-se...
Demitiste-te há umas semanas da Secretaria de Estado da Indústria, explicando a
tua atitude numa carta enviada ao Conselho da Revolução. Porque não ter tentado
aplicar essas medidas, utilizar essa “pausa”?
M.P. – Pareceu-me que tínhamos chegado a um ponto
em que já não via muito bem o que se poderia ainda fazer, porque o problema já
não é de “fazer”; pode imaginar-se dezenas de medidas no plano económico, mas o
único problema é ter capacidade para as aplicar. Porque a situação é de tal
ordem (o desemprego pode duplicar em 2 meses e atingir 600 mil pessoas em
Outubro), que, agora, é essencialmente do ponto de vista político que se poderá
conseguir “ganhar” as pessoas. Mas só através de medidas muito duras. Desde Janeiro
deste ano que eu falo de uma economia de guerra. Mas esta pressupõe ou um apoio
social muito importante ou uma repressão bastante severa. Não julgo que se
possa passar neste momento sem uma forte repressão, seja qual for o poder
político [...]
Os conflitos partidários serão um “bloqueio” suplementar?
M.P.- Actualmente, os partidos não raciocinam
em termos económicos. Mas (sobretudo, para os grandes partidos) apenas em
termos de ocupação do Poder. Pensam que podem resolver tudo assim, e não
propõem uma solução possível para a crise actual. Se, amanhã, Soares fosse
primeiro-ministro, como ele afirma possível, a economia ficaria imediatamente
paralisada, pois os trabalhadores não o aceitariam... Mesmo que, no Norte, isso
fosse mais admitido. Isso só poderia levar a uma confrontação violenta. Nem
teria tempo de receber o dinheiro do Mercado Comum...
Fala-se
muito das condições que o Mercado Comum exige de Portugal para conceder
créditos. Que pensas disso?
M.P. – É um problema muito importante, pois se está
sempre a falar de independência nacional neste país sem nunca ter jogado essa
carta... Uma parte considerável da pequena burguesia poderia ser mobilizada em
torno de um programa efectivo de independência nacional. Diz-se que o Mercado
Comum se prepara para receber Portugal, para lhe emprestar dinheiro. Desde que
nós tenhamos uma “democracia pluralista”... Então, procura-se a todo o custo
mostrar que, nos documentos do MFA, trata-se efectivamente de uma democracia
pluralista. Exactamente o contrário do que se devia fazer. Ninguém empresta
milhares por generosidade, mas porque espera disso um resultado político. Há
que falar a linguagem que os nossos interloccutores da CEE compreendem: isto é,
a dos negócios. Dizer-lhes claramente que nós temos dois jogos diferentes. Nós
queremos utilizar o dinheiro da CEE para fazer o contrário do que ela deseja:
para prosseguir o processo revolucionário. Se
nos empresta dinheiro, é na esperança de ter influência sobre o que se
passa aqui. Se recusa esse empréstimo, há que medir as consequências: Portugal
pode sair disso completamente isolado ou sob a pata de Moscovo... É pois a CEE a decidir. Mas não tem de pôr
condições. Independência nacional é isso. Ora essa expressão tem sido sempre
utilizada como um “slogan”. Talvez porque, em Portugal, o imperialismo não se
faz sentir com o mesmo peso que numa América Latina, por exemplo, onde o ódio
ao americano é omnipresente. Aqui, o imperialismo é qualquer coisa de muito
abstracto; há que desmascará-lo dia a dia no concreto.
Poderás definir a crise actual?
M.P. - Ao contrário das duas
crises precedentes, o 28 de Setembro e o 11 de Março, a crise actual nasceu a
“frio”. O que talvez explique que ela seja mais profunda: embora não conheçamos
ainda todos os pormenores dessas crises passadas, sabe-se que o 28 de Setembro
marcou a queda da hipótese spinolista que ainda existia no seio do MFA e
paralisava tudo... Podia-se, desde então começar a tomar medidas revolucionárias.
Pense-se o que se pensar das nacionalizações, elas serviram para destruir um
certo número de laços de dominação da grande burguesia, o que permitiu entrar
numa nova fase. Em dado momento, e sem que se saiba muito bem porquê, esta
chegou a uma “crise a frio”. Por meados de Junho, sem qualquer conflito aberto
evidente, começaram as discussões entre militares... E elas estiveram na origem
da crise actual. Nesta medida, pode dizer-se que os militares a criaram
voluntariamente. Mas isto pôde passar-se porque a crise já existia, em estado
latente: alguns militares tiveram o mérito de a revelar. Toda a gente sentia
que as contradições deviam ser resolvidas, que a coisa não podia prolongar-se.
Apesar disso, tentaram manter a coligação governamental – o que provocou a
crise actual. Isto é, uma situação caracterizada por um novo compromisso,
embora de um tipo muito diferente: o triunvirato. Mesmo que se possa pensar que
ele não será viável por muio tempo, chegou-se assim a concentrar neste tipo de
órgão, mais ou menos nitidamente, os três grandes tipos de solução viáveis.
Duas soluções “clássicas”, representando duas correntes, e uma terceira
possibilidade, ainda que mal definida e que tem grandes dificuldades para se
impor sem passar pelas organizações: o poder popular. Se há ainda hoje uma
possibilidade de ver qualquer coisa de novo e criador em Portugal, isso só poderá resultar do desenvolvimento desta
“terceira via”. Isso a que se chama (sem se saber ainda muito bem o que é) o
poder popular, desenvolveu-se por toda a parte, após o 25 de Abril, de uma
forma anárquica, heterogénea, sem ideologia definida. Isto pode por vezes
levantar problemas, na medida em que, ao falar-se, por exemplo, numa comissão
de moradores, pode tratar-se de qualquer coisa de verdadeiramente
revolucionário, mas também por vezes, de reaccionário. Tenho visto dezenas de
comissões de trabalhadores, umas nitidamente orientadas para os partidos ou por
organizações, outras francamente reaccionárias, que “brincavam” às empresas
familiares ou que eram a própria imagem da colaboração de classes, na medida em
que o patrão fazia parte delas. Mas o problema não é esse: o que é
revolucionário não é o que as pessoas pensam, em termos de ideologia, mas o simples
facto de essas comissões existirem como centro de Poder. Mesmo nas empresas
familiares, isso é que é revolucionário. Mas este movimento nunca foi
coordenado. Era preciso pô-lo em ligação com as estruturas militares, que são,
em Portugal, as mais poderosas e actuantes. Porque, se há em Portugal qualquer
coisa que possa aparentar-se com um movimento de libertação são precisamente as
novas relações que se vêem nas casernas, sobretudo nas que têm o poder militar
efectivo e que estão, na sua zona, muito ligadas às estruturas de poder
popular. Se se conseguisse pôr todas estas iniciativas em termos de poder,
deixando-as desenvolver-se (e não apenas nas zonas urbanas), se tivessem tempo
suficiente para isso, haveria uma possibilidade... Mas este problema do tempo é
grave: com 600 mil desempregados no Outono temos pouco tempo para conseguir
essa ligação com as massas.
As organizações da esquerda revolucionária podem desempenhar um
papel importante nesse projecto...
M.P. – Infelizmente, não o creio. Se há
qualquer coisa de pouco novo em Portugal, são precisamente as organizações de
esquerda revolucionária... E isto é dramático. Elas são em Portugal as mesmas
que por toda a parte: interessantes, em termos de produção teórica, por vezes
de inserção em certas lutas. Mas, numa situação revolucionária, ou, pelo menos,
pré-revolucionária, como o Portugal de hoje, não “dão” nada. Contentam-se em se
definir – nos textos – relativamente ao PC ou ao PS, mas nunca avançaram com um
projecto de desenvolvimento desse poder popular de que tanto falam. Por outro
lado, e sem fazer economismo (pois de mais sei eu que as soluções económicas
são prioritariamente políticas), falta a esssas organizações um mínimo de
conhecimento dos problemas económicos. É preciso ter consciência disso... saber
como transformar um sistema económico noutro sistema... O que põe problemas
enormes. A esquerda revolucionária raciocina em termos pontuais: uma luta, uma
empresa...
Fizeste por diversas vezes referência ao problema tempo, que
poderá faltar. Porquê?
M.P. – Não me parece que possa haver nisso
grandes surpresas... A única possível seria talvez o sucesso da terceira via, a
da ligação com as massas: e sê-lo-á, se no campo económico, as coisas não se
precipitarem demasiado. Ter-se-ia então um tipo de organização social, de
organização da produção e do Poder, muito democrático, no sentido mais forte da
palavra. Qualquer coisa de muito descentralizado e de fortemente apoiado nas
organizações locais ou das empresas. Se não tivermos tempo de chegar lá, se a
situação se precipitar, chegaremos então, com ou sem guerra civil a uma
ditadura de extrema-direita ou de tipo estaliniano – que, de qualquer modo,
conduziria à extrema-direita, a maior ou menor prazo. Na melhor hipotese, isso
poderia ser uma solução “pretoriana”, nem nasserista, nem peruana, - peronista.
Se é que se pode chamar-lhe solução ...