DINAMIZAR O SECTOR INDUSTRIAL E CONTROLAR A PRODUÇÃO E O MERCADO – preocupação do respectivo secretário de Estado
Diário de Notícias, 17 de Junho de 1975
Falando sobre as linhas de actuação do seu Ministério, o engº Martins Pereira, secretário de Estado da Indústria e Tecnologia, refere-se, nesta sua entrevista ao Diário de Notícias, ao papel fundamental da participação dos trabalhadores no controle da produção.
A propósito, este membro do Governo aponta formas desse controle, já em experiência em alguns sectores, diferentes das nacionalizações. Formas essas que o engº Martins Pereira considera neste momento sinais progressistas e mais avançadas do que as próprias nacionalizações, porque mais propícias à participação das massas trabalhadoras.
Entrevistado no seu gabinete, instalado no antigo Palácio de Condeixa, na Rua da Horta Seca, o engº Martins Pereira – autor de dois ensaios sobre a realidade portuguesa, “Pensar Portugal Hoje” e “Indústria, Ideologia e Quotidiano” – afirmaria ainda que a actuação do seu Ministério compreende medidas a adoptar a curto prazo. No entanto, como sublinhou, e no âmbito dessa actuação, a sua preocupação fundamental é a dinamização do sector industrial, tendo em consideração duas grandes linhas de acção: a dinamização pelo controle da produção e a dinamização pelo mercado.
O secretário de Estado da Indústria e Tecnologia falar-nos-ia ainda do acordo de cooperação industrial com a Polónia no sector naval, recentemente anunciado, e da batalha da produção, a qual o engº Martins Pereira considera que não deve reduzir-se a um mero slogan publicitário.
Entrevista de Mário Rosendo
A actuação do Governo no sector industrial
D.N. – Quais as linhas gerais e fundamentais da actuação do Governo, mais especificamente do Ministério da Indústria, em relação ao sector industrial?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – Após a tomada de posse e entrada em funções da respectiva equipa, a preocupação do Ministério da Indústria foi elaborar um programa interno compreendendo um conjunto de medidas a adoptar a curto prazo, programa que, posteriormente, foi discutido e aprovado em Conselho de Ministros Económico.
Na verdade, a maior parte dos problemas com que se debate a indústria exige acções a curto prazo. Não são, contrariamente ao que gostaríamos de dizer, problemas de investimento e de longo prazo. Estes são problemas de fundo, pois determinam o futuro: temos de simultaneamente pensar neles, mas sem esquecer que o destino do processo revolucionário português se decidirá, em grande parte, nas decisões que forem tomadas (não só no campo industrial) a relativamente curto prazo.
Há uma série de sectores efectivamente em crise por diversas razões. Uma delas é, sem dúvida, a desagregação do sistema económico, os mecanismos de decisão e toda uma viragem política apontando para uma nova racionalidade de produção, para novas relações sociais, o que, como é natural, causou uma série de traumatismos. Outra, os problemas resultantes de ligações muito íntimas com o mercado internacional, em situação de crise, como se sabe, e, por outro lado, as dificuldades que nos foram (e têm sido) provocadas interna e externamente, independentemente da crise capitalista que continua a arrastar-se.
Portanto, a nossa preocupação incide sobre dois aspectos muito concretos, sendo um o controle dos serviços básicos da indústria, que tomou e tem estado a tomar formas diversas; outro, aquilo a que chamamos o programa de apoio à produção nacional. Este último tem como objectivo dinamizar aqueles sectores que, não sendo básicos, são, no entanto, extremamente importantes na Economia Nacional e que são constituídos por numerosas pequenas e médias empresas, que se encontram desarticuladas, com problemas de ocupação da capacidade produtiva, de liquidez, etc., criando situações de tensão de emprego e de rigidez da malha económica.
Numa palavra, podemos assim dizer que a nossa preocupação fundamental é a dinamização. Para isso vemos duas linhas, a que chamaríamos a dinamização pelo controle e a dinamização pelo mercado. A primeira é aquela que, por via de nacionalizações ou segundo outros esquemas, permite o controle efectivo de determinadas empresas e sectores.
Acentuo, que para além da nacionalização, há outras formas de controle. Em determinados sectores, de que é exemplo a metalomecânica, é intenção criar mecanismos e órgãos que tenham como objectivo o controle dessas actividades, segundo um esquema que até pode vir a ser, na minha opinião, politicamente mais progressista do que a própria nacionalização (na fase em que actualmente nos encontramos). Na verdade, se não for tirado um partido político muito rápido das próprias nacionalizações, dentro das novas estruturas que delas resultem, estas podem em certa medida ser bloqueadoras da dinamização dos próprios trabalhadores e da sua intervenção no processo revolucionário. E julgo ser indiscutível que, sem intervenções dos trabalhadores, se corre o risco de uma simples estatização.
A outra linha das nossas preocupações é, como dissemos, a dinamização pelo mercado, que se dirigirá aos sectores cujos problemas fundamentais são precisamente os do mercado. Aqui, a intervenção não pode ser só do Ministério da Indústria. O caso mais típico é o das indústrias de materiais de construção.
Tem que haver, assim, a nível global do Governo ou de outros ministérios, uma acção comum com o objectivo de intervir e dinamizar outros sectores de actividade, que não dependem do Ministério da Indústria mas que têm um efeito de arrastamento absolutamente decisivo. No entanto, isso não quer dizer que, mesmo da parte do Ministério da Indústria, não tenham sido iniciadas determinadas acções no campo da dinamização pelo mercado.
Formas de controle mais progressistas do que as próprias nacionalizações
D.N. – O sr. secretário de Estado, ao referir-se ao controle da produção, falou de outras formas e sistemas que, no seu entender, são mais progressistas do que as próprias nacionalizações. Poderá especificar essas formas?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – O que digo é que há formas de controle com potencialidades para poderem vir a revelar-se mais progressistas, mais avançadas na fase actual, do que as próprias nacionalizações.
Na base de uma nacionalização, temos o Estado a tomar directamente o lugar do empresário, o que pode conduzir a uma mera substituição de administradores, se não houver dentro dos sectores nacionalizados, e rapidamente, uma dinâmica muito grande por parte dos trabalhadores no sentido de uma participação activa no próprio processo de reestruturação desses sectores e dessas empresas.
Portanto, com as nacionalizações há um risco: o de se dar uma simples substituição de administrações. E esse risco depende da própria dinâmica dos trabalhadores. Eles terão uma palavra decisiva, mas a nacionalização, como tratamento de choque, pode, só por si, dar uma tranquilidade excessiva às próprias massas trabalhadoras com o argumento: “Agora isto é nosso, pois o Estado tomou conta...”
Ora as formas de controle que não implicam imediatamente a nacionalização podem ser exercidas, por exemplo, por órgãos do Estado e, conjuntamente, por órgãos representativos dos trabalhadores, que se aplicam a fazer o chamado controle de produção a nível sectorial.
Há portanto um conjunto de empresas, há comissões de trabalhadores ou de controle da produção. O Estado, por sua vez, em ligação com essas comissões, vai, de certa maneira, reorganizar o sector, impor determinadas normas, intervir na repartição dos investimentos e, inclusivamente, das próprias encomendas.
E quando digo que este esquema é progressista é nesse sentido. Um esquema destes apela de facto para uma vigilância permanente das próprias comissões de trabalhadores, através da sua participação no órgão estatal e da sua acção a nível das empresas, o que, repito, pode ser potencialmente mais progressista do que, em certos casos, uma nacionalização imediata.
Isto, no entanto, não significa que não haja sectores em que só é concebível, como aliás já aconteceu, a nacionalização imediata, até porque eram os centros de acumulação monopolista. Essas nacionalizações teriam, pois, que ser feitas e ainda, provavelmente, haverá outras.
Há, porém, outros sectores em que a experiência do outro tipo me parece mais aconselhável.
Experiências nos sectores da metalomecânica e da indústria naval
D.N. – Esses sectores coincidirão com aqueles em que predominam as pequenas e médias empresas, ou haverá outros, como, por exemplo, o da metalomecânica?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – A metalomecânica pesada é, precisamente, um caso em que tem havido todo um trabalho de preparação de um esquema desse tipo. E parece-me ser, de facto, um sector adequado para uma experiência deste tipo, além de que tem um poder de arrastamento muito grande. Além disso, o Estado domina já, inclusivamente, algumas empresas do sector.
Mas um outro caso, e este de pequenas e médias empresas, é o dos pequenos e médios estaleiros navais. Neste momento, está mesmo a criar-se uma comissão instaladora de um órgão de controle desse tipo neste sector, cuja estrutura é muito heterogénea.
Na verdade, para além de três grandes estaleiros – Lisnave, Setenave e Viana do Castelo –, que têm problemas muito específicos, há, neste sector, um conjunto de algumas dezenas de estaleiros, alguns dos quais muito pequenos e que até estão, neste momento, em regime de cooperativa de produção. Outros há de média envergadura, e outros até já com uma razoável dimensão e capacidade – São Jacinto, Mondego, etc. Tudo isto tem, pois, que ser articulado, pois há um equipamento produtivo importante, mas que está completamente desajustado e com problemas de ocupação.
E é nesse sentido que se está a lançar a experiência, estando já os trabalhadores a participar activamente na elaboração desse esquema.
Um outro caso, que posso citar, é o de um conjunto de quatro empresas metalomecânicas médias que estão, por vias diversas, sob controle do Estado. Estas empresas apresentam complementaridades tais, que nos levou a pensar que seria viável a elaboração de projectos comuns, tirando partido dos equipamentos das instalações e das capacidades técnicas. Os trabalhadores já criaram, inclusivamente, um secretariado comum a essas empresas e nós, Ministério da Indústria, vamos criar um grupo de trabalho para coordenar os vários projectos comuns.
Mas, o importante é que isto está a ser feito com a participação directa das comissões de trabalhadores das várias empresas. É, também aqui, um esquema um pouco diferente das outras experiências, pois, caso a caso, as situações são diferentes, exigindo soluções diferentes.
A dinamização pelo mercado
D.N. – Para além destes problemas específicos do controle da produção, há ainda os relacionados com a dinamização do mercado. Não estará, porém, esta questão também ligada ao comércio externo?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – Está ligado e não só. Quase que diria que, resumindo muito, há, entre os sectores em crise, dois bastante importantes: o têxtil e o dos materiais de construção.
No caso do sector têxtil, que estava virado para o mercado externo, é todo um programa de promoção no exterior que se tem que incrementar, o que, aliás, já tem vindo a ser feito, através do Fundo de Fomento de Exportação e de vários organismos de prospecção.
Mas, de qualquer modo, no âmbito do Ministério da Indústria, estamos a pensar, em conjunto com o Ministério do Comércio Externo, em lançar um esquema que terá como objectivo, de facto, dinamizar essa promoção externa, além de lançar as bases de uma reestruturação do sector.
Este sistema poderá, inclusivamente, ser feito através de algumas empresas importantes que, por via da nacionalização da Banca, passaram a ser controladas pelo Estado.
Acordo com a Polónia: um exemplo de cooperação industrial
D.N. – Ainda em relação ao mercado foi recentemente negociado um acordo com a Polónia respeitante à indústria naval. Qual o significado para o sector deste acordo?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – Este acordo é original e serve de exemplo para outros do mesmo tipo. Neste acordo com a Polónia, que designamos de cooperação industrial, põem-se em comum meios de produção, com o objectivo de completar as capacidades existentes entre os dois países.
Para os nossos estaleiros, o acordo tem um interesse muito grande, pois pode assegurar-lhes uma ocupação bastante considerável, nos próximos anos, mas dentro de uma cooperação técnica com a Polónia que, para nós, tem um interesse complementar, na medida em que poderemos adquirir, através dessa cooperação, conhecimentos tecnológicos e de projecto de que não dispomos.
O acordo com a Polónia pode, assim, ter um efeito de dinamização pelo mercado, embora, na realidade, o sentido do acordo não seja criar mercados para os nossos estaleiros.
É, de facto, um acordo de cooperação industrial em que os meios técnicos, existentes nos dois países, são postos em comum para a produção que interessa aos dois países.
Para nós, seria extremamente interessante que acordos deste tipo pudessem vir a ser assinados noutros domínios e com outros países. Inclusivamente, não é de excluir que, mesmo com a Polónia, venha a haver novos acordos deste tipo, mas noutros domínios, como no sector da metalomecânica. Por parte do governo polaco nota-se, é justo sublinhar, uma abertura e compreensão muito grandes à situação portuguesa.
A reconversão da indústria automóvel
D.N. – Um dos pontos que ultimamente tem estado em foco, é o caso das linhas de montagem automóvel. Fala-se na necessidade de reconversão dessa indústria, na diminuição de modelos automóveis montados em Portugal. Qual a política a seguir pelo Ministério da Indústria?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – O caso da indústria automóvel é uma das heranças mais dramáticas, do ponto de vista industrial, do anterior regime, na medida em que se promoveu a instalação de duas dezenas de linhas de montagem em que o valor acrescentado nacional é muito reduzido, e se multiplicou o número de marcas e modelos. É um exemplo de sector que nasceu completamente distorcido e virado para um tipo de civilização em que Portugal nem sequer estava (nem está) inserido. E esperamos que não venha a estar.
Este caso traz-nos também uma experiência curiosa e bastante positiva de participação dos trabalhadores na resolução dos seus próprios problemas.
Há muito que se sabe que havia crise no sector, mas foi necessário a publicação das restrições de crédito para aquisição de automóveis para que isso servisse de “balde de água fria” e pusesse toda a gente ligada ao sector consciente da necessidade de fazer qualquer coisa.
E foram os trabalhadores que criaram rapidamente uma comissão para estudar o problema da reconversão. E foram eles próprios que, em certo momento, descobriram que era necessário definir o papel do automóvel no país futuro.
O Ministério da Indústria, em reunião com delegados dessa comissão, decidiu, depois, promover a criação de um grupo de estudo sobre a política automóvel. Este grupo, que ficará ligado ao Ministério do Planeamento e Coordenação Económica, irá tratar dos problemas que se deparam ao sector no seu conjunto, englobando assim os sectores industrial e comercial (este último, aliás, com o maior número de trabalhadores), mas numa óptica de futuro.
Vai assim tentar definir-se, e por isso mesmo participa no grupo o Ministério dos Transportes, qual deverá vir a ser o papel do automóvel daqui a “x” anos, em conjugação com os transportes colectivos, assim como o número de modelos a construir, e como chegar a isso a partir do que existe.
Tudo isto tem que ser definido num prazo de cinco meses. E é uma tarefa eminentemente política, porque se trata de um sector que, só por si, é símbolo de um determinado tipo de civilização.
Controle da produção pelos trabalhadores: acção eminentemente política e revolucionária
D.N. – É, pois, nesta óptica de dinamização sectorial que o Ministério da Indústria vê o essencial do problema do controle da produção?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – O controle de produção pelos trabalhadores é uma questão que tem sido pouco debatida e não me é possível agora desenvolver o tema. Quero apenas acentuar que o que temos estado a ver constitui o contributo do Ministério da Indústria para que tal controle tenha uma área de aplicação mais vasta que a da empresa isolada, e para que, portanto, os trabalhadores comecem a intervir na própria “gestão social”. Mas o essencial do problema não reside nisto: reside na consciência dos trabalhadores de que o controle da produção é uma acção eminentemente política e revolucionária, e nas formas justas que saibam encontrar, caso a caso, para exercer essa acção que, como é evidente, ultrapassa largamente o campo estritamente sindical. E não me venham acenar com o espectro da autogestão e dos seus riscos num contexto capitalista. Quer se goste quer não, há hoje em Portugal numerosas experiências muito positivas de autogestão, não só no sector industrial, que compete precisamente aos órgãos de controle sectorial sustentar e apoiar – em conjunto com outras formas de controle da produção a nível empresarial – cujos riscos poderão ser minimizados se se encontrarem formas de “contabilidade social” de transição que gradualmente subtraiam o sistema económico à lógica do lucro privado. Tudo isto está por discutir, mas é de vital importância política.
Não se pode resumir a batalha da produção a um slogan publicitário
D.N. – Parece-nos que todo este esquema acima traçado sobre a dinamização do controle da produção se insere também na batalha da produção.
Não será?
SECRETÁRIO DE ESTADO DA INDÚSTRIA – Repare que, sem o explicitar, ainda não falamos até aqui de outra crise que não fosse a da batalha da produção. Eu penso que não se pode resumir a batalha da produção a um slogan publicitário. Seria extremamente grave que as pessoas fossem arrastadas por uma via desse tipo; para produzir sem saber o quê, como, para quê, para quem...
Em muitas empresas, admito que os trabalhadores tenham empenho em produzir, em tirar dos equipamentos e das suas capacidades o maior rendimento. Mas, como vimos, há problemas de mercado, de financiamento, e tantos outros e penso que, de certa maneira, pode ser frustrante em certos casos o lançar uma batalha da produção de uma forma relativamente discriminatória.
Quando digo discriminatória é no sentido de apontar exemplos de trabalhadores – por quem, aliás, penso que deve haver toda a admiração – que estão em situação favorável em relação a outros que só não produzem porque não têm condições para o fazer. E são essas condições que o Ministério da Indústria, conjuntamente com outros ministérios e comissões de trabalhadores, está a tentar criar.
A imagem do trabalhador exemplar pode revelar-se um pouco contraproducente e, mais do que isso, certas afirmações que têm sido feitas recentemente, e por pessoas de responsabilidade – e que não posso de maneira nenhuma subscrever –, aconselhando e fomentando a denúncia de trabalhadores por outros trabalhadores. Considero que é, de facto, algo que nada tem a ver com qualquer espécie de socialismo que se queira implantar em Portugal.
Se os trabalhadores não forem capazes de encontrar as formas de se organizarem e controlarem a produção e de participarem a fundo na dinamização do seu próprio sector, não julgo que se possa falar de uma batalha da produção verdadeiramente revolucionária. Pois batalhas da produção já as houve antes em muitos países – estou a lembrar-me dos países capitalistas depois da guerra – e apenas acabaram por conduzir a um reforço do próprio sistema capitalista, por se ter decidido meter entre parêntesis o projecto revolucionário.