A ditadura das finanças

O facto é que estamos bem longe dos tempos em que os economistas, mesmo os de pendor mais liberal, se debruçavam sobre os problemas do desenvolvimento económico, como uma questão central do seu ofício. ... ler mais

Entrevista do ex-secretário de Estado da Indústria Português

Libération, 13 de Agosto de 1975

 

“O PODER POPULAR, ÚNICA HIPÓTESE DE FAZER ALGO DE NOVO E DE CRIADOR EM PORTUGAL”, declara João Martins Pereira

 

Há algumas semanas atrás, João Martins Pereira, Secretário de Estado da Indústria, demitiu-se do 4º. Governo Provisório, explicando as razões da sua atitude numa carta publicada na imprensa. A esta carta seguiu-se, no dia seguinte, um longo texto de Jorge Sampaio e João Cravinho, analisando pormenorizadamente a situação política e económica portuguesa (ver Libération de 18 e 21 de Julho).

Extremamente críticos em relação ao PC, aqueles a quem se chama habitualmente (aliás erradamente) os “ex-MES” abordaram claramente os problemas da constituição do “bloco social de apoio à revolução”, do “apartidarismo”, da aliança povo-MFA e da falta de autoridade e de poder... Estas análises pareceram-nos muito importantes e por isso contactámos João Martins Pereira, que também é um amigo, para que ele esclarecesse um certo número de pontos evocados na sua carta de demissão.

No sábado passado, o semanário Expresso voltou a falar dos “ex-MES”, ao publicar um dos seus documentos que anunciava “a formação de uma nova organização política que poderia eventualmente vir a transformar-se, e seria constituída em torno de Jorge Sampaio, João Cravinho, César Oliveira, Nuno Brederode Santos e João Martins Pereira”. Esse texto, que é apenas um documento de trabalho, foi divulgado sem o acordo de alguns dos que tinham trabalhado nele.

João Martins Pereira explicou-nos que não tem nada a ver com a redacção do texto publicado pelo Expresso nem, aliás, com as discussões que precederam a sua elaboração. “Não tenho, precisou ele, de maneira nenhuma a intenção de me integrar em qualquer grupo, partido ou organização, qualquer que ele seja”

José Garçon

 

 

Depois do 25 de Abril, pensou-se sempre – ou, pelo menos, actuou-se sempre – como se fosse possível tratar a economia em termos puramente económicos. Imaginou-se, pois, as mais diversas medidas económicas clássicas, que não tiveram a menor eficácia. Porque nunca se ligou a acção económica à acção política, nem se conjugou o que se tentava fazer no domínio económico com a acção quotidiana, concreta, do Governo, dos partidos e das massas. A ponto de, ainda há poucos meses, se repetir na televisão que era preciso “investir a todo o custo”...

Hoje, mesmo nas empresas onde os trabalhadores são pouco politizados, já ninguém quer ouvir falar de lucro, há um forte sentimento anticapitalista... A pressão política das massas, o pôr em causa a hierarquia na empresa, o ataque aos quadros surgiram precisamente porque as massas estavam pouco politizadas, reagindo espontaneamente contra a opressão, personificada tanto pela PIDE ou pela GNR como pelo chefe ou pelo  patrão... Assim, é difícil, depois de um tal movimento, poder ainda conquistar a pequena burguesia e, nomeadamente, os pequenos empresários industriais.

Em contrapartida, é ainda possível conquistar camadas importantes de pequenos agricultores, porque foram menos visados pela propaganda ideológica. É muito difícil “ganhar” para a revolução um pequeno empresário capitalista que, durante meses, foi tratado de “fascista” e “reaccionário”. Mas é possível transformar uma mentalidade de pequenos rendeiros, caseiros, gente que vive num sistema de relações económicas pré-capitalistas e levá-los a defender um projecto de socialismo.


Que camadas poderiam ser conquistadas para a revolução, e com que tipo de medidas?

Digamos que se poderiam ganhar algumas camadas da pequena burguesia.

Entendo por pequena burguesia os pequenos empresários comerciais ou industriais, bem como toda uma camada de trabalhadores por conta de outrem e de funcionários tocados pela ideologia pequeno-burguesa do consumo, mas que não deixam de ser assalariados do Estado, das companhias de seguros, da publicidade, etc.: aqueles a quem se chama, efectivamente, as massas populares (embora não constituam nem o proletariado industrial nem o proletariado agrícola). Pode-se despertar neles o reflexo do trabalhador assalariado e, assim,  fazer deles aliados. É indispensável e, creio, possível. Mas, no que se refere aos empresários não agrícolas, é muito difícil. Penso que se vai tentar, a curto prazo, conquistar as camadas pequeno-burguesas não urbanas, através de toda uma série de medidas económicas, talvez vagamente demagógicas, mas que podem desempenhar um papel importante.  Prevê-se assim uma acentuada redução do preço dos adubos, a compra de todo o vinho em stock hoje em dia... É um encargo financeiro enorme, mas que pode ter consequências políticas positivas. Estas medidas permitirão uma moratória de dois ou três meses. Esse espaço de tempo é de importância considerável, sobretudo no Norte, onde a situação está a tornar-se realmente explosiva, e essa agitação pode atingir o Sul, sem falar das consequências nas Forças Armadas. Mas esta “moratória” deve ser utilizada para definir simplesmente uma política, e uma política económica, pois não irá prolongar-se...


Demitiste-te há umas semanas da Secretaria de Estado da Indústria, explicando a tua atitude numa carta enviada ao Conselho da Revolução. Por que não ter tentado aplicar essas medidas, utilizar essa “pausa”?

Pareceu-me que tínhamos chegado a um ponto em que já não via muito bem o que se poderia ainda fazer. Porque o problema já não é  “fazer”: pode imaginar-se dezenas de medidas no plano económico, mas o único problema é ter capacidade para as fazer aplicar. A situação é de tal ordem (o desemprego pode duplicar em 2 meses e atingir 600 mil pessoas em Outubro) que, a partir de agora, é essencialmente do ponto de vista político que se poderá conseguir “ganhar” pessoas. Mas só através de medidas muito duras. É por isso que desde Janeiro que  falo de uma economia de guerra. Mas esta pressupõe ou um apoio social muito importante ou uma repressão bastante severa. Não julgo que se possa prescindir neste momento de uma forte repressão, seja qual for o poder político [...]


Que significa uma forte repressão?

Eu disse mais acima que se previa reduzir o preço dos adubos e comprar todo o vinho dos agricultores do Norte para conquistar – ou pelo menos neutralizar – as camadas importantes da pequena burguesia rural. Se fizermos isso, é evidente que alguns dias mais tarde, massas enormes de trabalhadores industriais virão reclamar aumentos de salários... Que fazer então? Isso provocará exactamente o que se passou no Chile no segundo ano da Unidade Popular...  Conceder vantagens enormes aos pequenos agricultores para os conciliar e recusar aos operários aumentos de 20%? Quer o façamos quer não, sabe-se o que isso irá provocar. É por isso que eu acho que estas medidas são demagógicas, apesar de serem indispensáveis neste momento...


Os conflitos partidários são um “bloqueio” suplementar?

Actualmente, os partidos não raciocinam em termos económicos. Mas apenas, sobretudo os grandes partidos, em termos de ocupação do poder. Pensam que podem resolver tudo assim, embora não proponham uma solução possível para a crise actual. Ora, se amanhã Soares for primeiro-ministro, como ele próprio afirma ser possível, a economia ficará imediatamente paralisada, porque os trabalhadores não o aceitarão... Mesmo se, no Norte, ele fosse menos contestado. Isso só poderia levar a uma confrontação violenta. Ele nem teria tempo de receber o dinheiro do Mercado Comum...


Fala-se muito, a propósito, das condições que o Mercado Comum exige de Portugal para conceder créditos. Que pensas disso?

É precisamente um problema muito importante, pois está-se sempre a falar de independência nacional neste país sem se ter nunca jogado essa carta... Ora, uma parte considerável da pequena burguesia poderia ser mobilizada em torno de um programa efectivo de independência nacional. O Mercado Comum prepara-se, diz-se, para receber Portugal, para lhe emprestar dinheiro. Desde que nós tenhamos uma “democracia pluralista”... Portanto, procura-se a todo o custo mostrar que, nos documentos do MFA, é efectivamente de uma democracia pluralista que se trata. É exactamente o contrário do que se deveria fazer. Ninguém empresta biliões por generosidade, mas porque espera disso um resultado político. É preciso falar a linguagem que os nossos interlocutores da CEE compreendem: isto é, a dos negócios. Dizer-lhes claramente que nós temos dois interesses diferentes. Nós queremos utilizar o dinheiro da CEE para fazer o contrário do que ela deseja: prosseguir o processo revolucionário. Se nos emprestam dinheiro, é na esperança de ter influência sobre o que se passa aqui. Se recusamos esse empréstimo, é preciso medir as consequências: Portugal pode “safar-se” caindo completamente sob a dependência de Moscovo, por exemplo, ou isolando-se completamente...

É portanto a CEE que decide. Mas não tem que pôr condições. É isso a independência nacional. Ora esta expressão tem sido sempre utilizada como um “slogan”. Talvez porque, em Portugal, o imperialismo não se faça sentir com o mesmo peso que numa América Latina, por exemplo, onde o ódio ao americano é omnipresente. Aqui, o imperialismo é qualquer coisa de muito abstracto; é preciso desmascará-lo quotidianamente na prática. Por exemplo, em cada investimento...


Poderás definir a crise actual?

Ao contrário das duas crises precedentes, o 28 de Setembro e o 11 de Março, a crise actual nasceu a “frio”. O que talvez explique que ela seja mais profunda: embora não conheçamos ainda todos os pormenores dessas crises passadas, sabe-se, grosso modo, que o 28 de Setembro marcou a queda da hipótese spinolista que ainda existia no seio do MFA e paralisava tudo... Podia-se desde então começar a tomar medidas revolucionárias. Pense-se o que se pensar das nacionalizações, elas serviram para destruir um certo número de laços de dominação da grande burguesia, o que permitiu entrar numa nova fase. Em dado momento, e sem que se saiba muito bem porquê, chegou-se a uma “crise a frio”. Por meados de Junho, sem qualquer conflito aberto evidente, começaram as discussões entre militares... E elas estiveram na origem da crise actual. Nesta medida, pode dizer-se que os militares a criaram voluntariamente. Mas se isto se pôde passar, é porque a crise já existia em estado latente: alguns militares tiveram o mérito de a revelar. Toda a gente sentia que as contradições deveriam ser resolvidas, que a coisa não poderia prolongar-se. Apesar disso, tentaram manter a coligação governamental, o que provocou a crise actual. Isto é, uma situação caracterizada por um novo compromisso, embora de um tipo muito diferente: o triunvirato. Mesmo que se possa pensar que ele não será viável por muito tempo, conseguiu-se assim concentrar neste tipo de órgão, mais ou menos claramente, os três grandes tipos de soluções viáveis. Duas soluções “clássicas”, representando duas correntes, e uma terceira possibilidade, ainda mal definida e que tem uma grande dificuldade para se impor sem passar pelas organizações: o poder popular. Se há ainda hoje uma possibilidade de ver qualquer coisa de novo e de criador em Portugal, isso  só poderá resultar do desenvolvimento desta “terceira via”. Isso a que se chama, sem se saber ainda muito bem o que é, o poder popular, desenvolveu-se por toda a parte, após o 25 de Abril, de uma forma anárquica, heterogénea, sem ideologia definida. O que pode por vezes levantar problemas, na medida em que, ao falar-se, por exemplo, numa comissão de moradores, pode tratar-se de qualquer coisa de verdadeiramente revolucionário, mas também, por vezes, de reaccionário. Tenho visto dezenas de comissões de trabalhadores, umas nitidamente orientadas para os partidos ou organizações, outras francamente reaccionárias, que fingem ser empresas familiares ou que são a própria imagem da colaboração de classes, na medida em que o patrão faz parte delas. Mas o problema não é esse: o que é revolucionário não é o que as pessoas pensam, em termos de ideologia, mas o simples facto de essas comissões existirem como centro de poder. Mesmo nas empresas familiares, isso é que é revolucionário. Mas todo este movimento nunca foi coordenado. Era preciso pô-lo em ligação com as estruturas militares, que são, em Portugal, as mais poderosas e actuantes. Porque, se há em Portugal qualquer coisa que possa aparentar-se com um movimento de libertação, são precisamente as novas relações que surgem nas casernas, sobretudo nas que têm o poder militar efectivo e que estão, na sua zona, muito ligadas às estruturas de poder popular. Se se conseguisse pôr todas estas iniciativas em termos de poder, deixando-as desenvolver-se – e não apenas nas zonas urbanas –, se tivéssemos tempo suficiente para o fazer, haveria então uma possibilidade... Mas este problema do tempo é grave: se temos 600 mil desempregados no Outono, temos pouco tempo para conseguir essa ligação com as massas.


As organizações da esquerda revolucionária podem desempenhar um papel importante nesse projecto...

Infelizmente não o creio. Se há qualquer coisa de pouco novo em Portugal, são precisamente as organizações da esquerda revolucionária... E é dramático. Em Portugal são as mesmas que por toda a parte: interessantes, em termos de produção teórica, por vezes de inserção em certas lutas. Mas, numa situação revolucionária ou, pelo menos, pré-revolucionária, como a de hoje em Portugal, não “dão” nada. Contentam-se em se definir – em textos – relativamente ao PC ou ao PS, mas nunca avançaram com um projecto de desenvolvimento desse poder popular de que tanto falam.

Por outro lado, e sem fazer economicismo (porque eu sei  muito bem que as soluções económicas são prioritariamente políticas), falta a essas organizações um mínimo de conhecimentos sobre os problemas económicos. É preciso ter consciência disso... saber como transformar um sistema económico num outro sistema... O que põe problemas enormes. Portanto, a esquerda revolucionária raciocina em termos pontuais: uma luta, uma empresa...


Fizeste por diversas vezes referência ao problema do tempo que poderá faltar. Porquê?

Não me parece que possa haver nisso grandes surpresas... A única possível seria talvez o êxito da terceira via, a da ligação com as massas: e sê-lo-á, se no campo económico, as coisas não se precipitarem demasiado. Ter-se-ia então um tipo de organização social, de organização da produção e do Poder, muito democrático, no sentido mais forte da palavra. Qualquer coisa de muito descentralizado e de fortemente apoiado nas organizações locais ou das empresas. Se não tivermos tempo de chegar lá, se a situação se precipitar, chegaremos então, com ou sem guerra civil, a uma ditadura de extrema-direita ou de tipo estalinista – que, de qualquer modo, conduziria à extrema-direita, a maior ou menor prazo. Na melhor das hipóteses, isso poderia ser uma solução que se designa por vezes como “pretoriana”, nem nasseriana, nem peruana, mas peronista. Se é que se pode chamar a isso solução ...

Entrevista de José Garçon