A ditadura das finanças

O facto é que estamos bem longe dos tempos em que os economistas, mesmo os de pendor mais liberal, se debruçavam sobre os problemas do desenvolvimento económico, como uma questão central do seu ofício. ... ler mais

Para onde vai o capitalismo português? Procura de uma resposta com João Martins Pereira

Vida Mundial, nº 1381 (17 Out. 1974)

 

Que tipo de capitalismo existe em Portugal? Como se comportou nos últimos anos e como atravessou a crise colonial? Como se vai adaptar à perda das colónias como terreno de exploração? Qual será a sua estratégia na actual fase do processo político português: de que modo irá jogar nele? Como vai orientar o Estado democrático a sua intervenção política no processo de desenvolvimento capitalista? E qual irá ser o papel da classe trabalhadora nesse processo?

Para estas e outras perguntas procurámos uma resposta juntamente com João Martins Pereira, por ser um dos homens que melhor tem reflectido em Portugal sobre a relação do político com o económico, não só em trabalhos dispersos, como em dois ensaios “Pensar Portugal Hoje”, editado em 1971, e “Indústria, Ideologia e Quotidiano (Ensaio sobre o Capitalismo em Portugal)”, acabado de sair do prelo.

Entrevista de Adelino Cardoso

 

V.M. – A primeira questão que lhe queria pôr era relativa à estrutura da concentração capitalista portuguesa. É vulgar dizer-se que Portugal pertence a meia dúzia de famílias, mas nem sempre há uma ideia muito clara acerca do grau dessa concentração. Você no seu livro chegou à conclusão que há três grupos (CUF porquê os pontos?, Sacor e Champalimaud) que detêm 40%  do capital das 186 empresas industriais que analisou e se situam entre as maiores empresas do País, e que mais três outros grupos (o dos bancos Borges, Português do Atlântico e Espírito Santo) integram outra parte importante das restantes 186 empresas; e ainda que parte importante das empresas não integradas em nenhum deles estão dependentes, quer por via comercial quer por via financeira. De tudo isto se parece concluir que efectivamente estes grupos têm um papel dominante e controlam praticamente toda a indústria portuguesa. Quer isto dizer que existe, de facto, um grande capitalismo português?

J.M.P. – A isso eu posso responder que, assim como é frequente ouvir dizer que o capitalismo português é dominado por meia dúzia de famílias, também é frequente ouvir dizer que a indústria portuguesa é altamente pulverizada. Parece haver uma certa contradição no meio disto tudo. Isto deriva de dois critérios de apreciação. Apreciação em termos dimensionais, pelo que se verifica que há muito poucas grandes empresas, parece-me um critério errado para avaliar a concentração do capital, porque numa economia em que é absolutamente  dominante o modo de produção capitalista, numa economia completamente monetarizada, o que dá uma noção do grau de concentração não pode deixar de ser a concentração do capital financeiro. É através do sistema financeiro que se materializa a acumulação, que se faz todo o controle e toda a circulação do capital-dinheiro. Se utilizarmos  este segundo critério de apreciação não pode haver dúvidas de que Portugal é, certamente, um dos países onde o capital se encontra mais concentrado. E isto até por uma razão, a de o sistema bancário ser dominado por seis grandes bancos comerciais que têm na mão praticamente o crédito em Portugal e que estão ligados a grandes grupos industriais ou têm eles próprios fortes interesses industriais. Através deste sistema, um pequeno número de grupos financeiros e industriais, quer de base bancária, quer de base industrial, controlam, de facto, não direi a totalidade mas uma muito larga parcela das actividades económicas em Portugal. E tanto assim é que, desde o 25 de Abril, sempre que se fala de caos económico vai-se sempre parar ao problema do crédito. A banca é acusada de estar a fazer sabotagem económica: as pequenas empresas, a construção civil, todos se queixam de falta de crédito. E não deixa de ser curioso que, cinco meses depois do 25 de Abril, não tenham sido tomadas quaisquer medidas radicais de controle e orientação desse crédito, pois dá ideia de que seria uma actuação de necessidade imediata. A banca continua a funcionar em roda livre. Ora é aí que reside o nó da concentração capitalista em Portugal.

 

CAPITALISMO TRADICIONAL E TECNOCRÁTICO

 

V.M. – No seu livro faz também uma análise ideológica do capitalismo português, em que distingue “grosso modo” dois tipos de ideologia no capitalismo português: uma a que chama tradicional e outra capitalista tecnocrática. Por ideologia capitalista tradicional entende a relativa a sectores da burguesia que mais beneficiaram da exploração colonial, que acumularam capital à custa da exploração do trabalho do negro, ou os constituídos por proprietários latifundiários e por uma pequena burguesia comercial e industrial. Digamos que este grupo ideológico, sobretudo no que diz respeito aos grandes proprietários da terra, foi o sustentáculo político do primeiro período do fascismo chamado Estado Novo.  Quanto à ideologia capitalista tecnocrática, V. considera que ela foi veiculada por um grupo de políticos tecnocratas, que surge mais ou menos com a subida de Marcelo Caetano ao Poder e que corresponde aos interesses de uma grande burguesia industrial e financeira, embora esta não reconhecesse ainda essa ideologia como sua. Aliás V. afirma no seu livro, a páginas tantas, que “foi preciso o tratamento de choque do 25 de Abril para conduzir estes tecnocratas ao primeiro plano da intervenção política.”

J.M.P. – Esse tipo a que chamo capitalista tradicional resulta do modo como se desenvolveu e expandiu o sistema capitalista em Portugal durante o Estado Novo. Trata-se de um capitalismo que nunca conheceu aquilo que, à primeira vista, é característico de todas as fases de industrialização, isto é, um regime de livre concorrência, em que tivesse de defrontar diariamente os problemas  que lhe são levantados, dentro da própria burguesia, pela competição que constitui parte essencial da sua dinâmica interna. Por outro lado, nunca se viu confrontado directamente com um problema de luta de classes que obrigasse uma classe capitalista a assumir-se como tal face a outra classe. Na fase de industrialização que se seguiu à segunda guerra mundial e posteriormente se intensificou, o único problema que se levantava era, sempre que havia uma greve ou um conflito mais agudo, pura e simplesmente chamar a polícia (que, entretanto, convinha ir mantendo informada...). A luta de classes era desenvolvida para as instâncias políticas, por sua vez muito ligadas aos sectores dominantes (inicialmente muito ligados à terra e, numa segunda fase, mais directamente industriais e financeiros). Isto levou a que os empresários mantivessem uma ideologia ainda inspirada no ruralismo, agravada ainda por interesses coloniais, que não eram evidentemente de natureza a inspirar empresários “modernos e dinâmicos”. A exploração colonial foi feita por um país financeiramente pouco poderoso e incidiu muito na exploração agrícola, tendo os investimentos mais importantes sido feitos normalmente por interesses estrangeiros, nomeadamente nos transportes e nas minas.

 

V.M. – Nesta fase em que dominava o slogan “Portugal é um país essencialmente agrícola”, quase não se pode falar da existência de um capitalismo em Portugal, ou o que existia era muito incipiente.

J.M.P. – Havia já estruturas capitalistas. Mas tudo isso tinha ainda muito de rural. Um país nessa altura muito isolado politicamente, um nacionalismo muito exacerbado, um virar para as colónias, para a “grandeza” em termos de império colonial, tudo isto suportou a criação de um sector industrial muito protegido, o lançamento de empresários industriais e bancários – núcleos do futuro capitalismo mais desenvolvido dos anos 50 e 60 – completamente virados para o passado, para os valores da terra e das colónias, de modo nenhum integrados naquele grande movimento de reconstrução capitalista da Europa do pós-guerra. Isso dá a esses empresários a ideia de que dominam o processo histórico e é isso que faz com que nos anos 60 eles sofram um choque enorme, ao descobrir que há determinados factores que lhes escapam completamente e que põem em causa este modo de vida relativamente contemplativo em que só tinham privilégios a gozar e que os vai obrigar a tomar uma certa consciência de que o capitalismo não era exactamente aquilo. Os factores que vieram pôr em causa esta calma em que vivia o capitalismo português foram a guerra colonial que surgiu, quase diríamos, de surpresa, a emigração e um princípio de integração na economia europeia que, na realidade, foi imposta ao capitalismo português.

Passaram anos em que, praticamente, nada mais se fez do que assistir à partida maciça dos trabalhadores portugueses, à resposta aos problemas coloniais com uma guerra de extermínio. Foi preciso a morte de Salazar para o capitalismo tentar encontrar uma resposta. No seio dos próprios grupos capitalistas começou a surgir, embora não ao nível dos detentores do capital, um conjunto de economistas e engenheiros, homens que se começaram a aperceber que o capitalismo não era aquilo e que a única salvação para a economia portuguesa integrada num sistema capitalista moderno, eram o desenvolvimento, a racionalidade, a organização, a produtividade, a própria confrontação com sindicatos com quem se pudesse falar e negociar abertamente. Estes homens apostaram no marcelismo e jogaram a sua carta política, admitindo a possibilidade de que fosse possível, digamos, uma “transição pacífica” para um sistema capitalista moderno. São eles porta-vozes dessa ideologia tecnocrática. Ao nível dos detentores do capital dos grandes grupos monopolistas julgo que bem poucos se terão apercebido dessa evolução necessária, embora no que respeita às suas ligações coloniais seja evidente, nos últimos anos do fascismo em Portugal, uma grande desvinculação ou retracção (ou, dentro de outra estratégia, um reforço da articulação com os centros imperialistas), com excepção daqueles cuja base de acumulação se centrava na exploração de produtos coloniais, evoluindo no sentido de estarem preparados, pelo menos para uma autonomia gradual que, a certa altura, Marcelo começou a “esboçar”.

Penso que, mesmo sem os capitalistas se reconhecerem nessa ideologia tecnocrática inteiramente, de facto estavam a reunir-se as condições para haver uma certa convergência ideológica, isto é, para que os detentores do capital pudessem finalmente assumir a sua condição de capitalistas modernos.

 

V.M. – Há apesar de tudo algumas contradições nas suas teses. Como é que os grandes capitalistas não apoiaram politicamente esses porta-vozes de uma ideologia que defendia os seus interesses mais imediatos e se identificaram muitas vezes com o grupo da ideologia tradicional. Aliás V.,  no seu primeiro livro, “Pensar Portugal Hoje” afirma que a passagem do Estado Novo para o Estado Social seria uma adaptação das estruturas políticas à passagem do predomínio do sector agrário-comercial para o sector financeiro-industrial. As coisas não são portanto tão lineares como V. apresenta. Houve efectivamente uma fase bastante confusa na intervenção deste grupo tecnocrata e na evolução do regime Marcelo Caetano e no próprio comportamento dos principais grupos capitalistas. É certo que a gente sabe que a evolução do regime Marcelo Caetano é fundamentalmente entravada pela guerra colonial.

J.M.P. – Pois eu julgo mesmo que não há explicações lineares: não as há, com certeza, para explicar o essencial do que se passou. De facto, houve aquilo a que eu chamo um “bloqueio ideológico” total, que o regime fascista se impôs no plano da guerra colonial, é certo, e que paralisou totalmente qualquer possibilidade de transição pacífica. No meu primeiro livro, publicado quando se estava na “fase tecnocrática”, dou a entender que o sistema capitalista exigirá uma “liberalização” política. Mantenho aquilo que disse, simplesmente, nesta altura podia pensar-se, e os tecnocratas pensavam, que fosse possível fazer essa  transição sem haver um corte total, que fosse possível politicamente fazer uma “liberalização” gradual conducente a um capitalismo dinâmico, fatalmente necessário porque o capitalismo é efectivamente um modo de produção que está condenado a não parar. Na realidade, este bloqueio ideológico total, suportado por forças ainda ligadas à terra, que mantiveram até ao fim, já não uma preponderância económica, mas ideológica extremamente forte, e pelos capitalistas mais ligados aos interesses coloniais e que eram completamente incapazes sequer de pensar em termos neocoloniais, condenou irremediavelmente o fascismo (a quem as lutas dos movimentos de libertação davam por fim o golpe de misericórdia). Provavelmente não havia outra saída senão a ruptura que, em termos de projecto capitalista, é naturalmente muito mais traumatizante. Eu acredito que os mesmos tecnocratas que apostaram no marcelismo, e muitos dos quais voltaram ao de cima da política e da economia com o 25 de Abril, apostam agora abertamente numa democracia de tipo ocidental que – esperam eles – lhes traga as respostas que esse marcelismo se revelou incapaz de lhes dar.

 

O CAPITALISMO PORTUGUÊS FACE À DESCOLONIZAÇÃO

 

V.M. – Vamos tentar aprofundar um pouco mais a questão colonial. Ainda agora falámos de guerra colonial como factor decisivo na evolução recente do problema político português. Mas como estamos a falar preponderantemente do que é e do que vai ser o capitalismo português, vejamos relativamente a África o que foi e o que irá ser o comportamento desse capitalismo. Dá-me ideia que, de África, o capitalismo português aproveitou apenas, como V. aliás já referiu, resultados de uma super-exploração da mão-de-obra africana, fundamentalmente no sector agrário e no aproveitamento de certas matérias-primas, e estas muito rudimentares relativamente a um grande desenvolvimento industrial. Estamos na situação de sermos o único país colonialista cujo povo não prosperou com a exploração colonial. Apesar de termos tido um império colonial tão vasto, continuamos a ser um país subdesenvolvido. De qualquer modo, as colónias já lá vão ou estão a ir. Como irá passar o capitalismo português sem as colónias? Vai ficar abalado? Vai adaptar-se a formas neocolonialistas? No seu primeiro livro V. já afirmava que o capitalismo se encontrava em fase de integração no espaço capitalista mundial. No segundo livro chega a adiantar a hipótese de alguns grupos capitalistas o terem começado a fazer muito mais rapidamente para se libertarem precisamente da dependência de África, prevendo já o resultado de uma descolonização e de uma independência, preparando as suas bases noutro terreno. Como é que o capitalismo português se vai adaptar à nova situação de deixar de dispor de um terreno de tão fácil exploração como as colónias?

J.M.P. – Se voltarmos ao primeiro tema da nossa conversa e nos recordarmos que o capitalismo português é fortemente concentrado e há um certo número de grupos que, por uma ou outra via, mais directa ou indirectamente controlam a economia portuguesa, parece-me que convém examinar um pouco o tipo  de ligações que esses grupos tinham com as colónias e o comportamento que parece terem adoptado nos últimos anos do fascismo, para ter uma ideia do impacte que a descolonização lhes causará. Não considerando agora toda aquela fase do princípio do século em que as colónias portuguesas praticamente foram pasto do capital inglês, o capitalismo português aproveitou-se das colónias para a exploração de algumas matérias-primas agrárias que, ou eram fonte de divisas, como o café ou o sisal, ou constituíam matérias-primas a preços muito baratos para uma incipiente indústria nacional, caso dos algodões, oleaginosas, açúcar. Além disso, as colónias constituíam mercados, não muito vastos mas importantes, para alguns produtos primários da economia portuguesa (os vinhos, os têxteis) e permitiram manter proveitosos interesses no domínio dos transportes marítimos (e, posteriormente, aéreos), monopólio de transportes que foi bastante rendoso. Mas, na realidade, os grupos que, a certa altura, emergiram como dominantes na economia portuguesa mantiveram o núcleo fundamental dos seus interesses económicos aqui na Europa. Um grupo CUF teve sempre relativamente poucos investimentos fixos nas colónias, apenas algumas pequenas fábricas. Tinha na Guiné a sua coutada do amendoim, de que se viu livre quando o P.A.I.G.C. começou a tomar conta do território, e não teve dificuldades em reconverter as suas fontes de matérias-primas. Hoje, não creio que seja minimamente afectado pela independência daquela colónia. No que respeita a Moçambique os seus interesses eram relativamente reduzidos.

 

V.M. – O caso do grupo Champalimaud já é diferente... em Moçambique tem interesses industriais bastante fortes.

J.M.P. – Em Moçambique e também em Angola. O grupo Champalimaud é de facto – eu diria contrariamente ao que por aí é afirmado – o único grupo capitalista de tipo internacional que existe em Portugal. É frequente ouvir-se dizer que o único grupo económico português digno desse nome (dentro dos conceitos internacionais) é o grupo CUF, mas eu penso que não. O grupo Champalimaud tem-se revelado muitíssimo mais dinâmico, com mais abertura para as ligações internacionais.

 

V.M. – Quererá V. dizer que as ligações internacionais do grupo Champalimaud defendem mais a posição dos seus interesses nas colónias?

J.M.P. – Não, o que eu quero dizer com isto é que o grupo Champalimaud é aquele que tem maior flexibilidade para se adaptar. Eu posso explicitar: os grandes grupos internacionais que têm interesses em variadíssimos países estão constantemente submetidos a riscos políticos. É um dado da sua estratégia. Em certos casos, quando os seus interesses são fortemente afectados fazem intervir os meios políticos ou têm uma maleabilidade muito grande para jogar em vários tabuleiros. São muito mais flexíveis em termos ideológicos que os representantes daquele capitalismo tradicional em Portugal.

 

V.M. – Aliás não está provado que o grupo Champalimaud tenha perdido já no tabuleiro das colónias...

J.M.P. – ... Pois, não está. E se perder alguma coisa faz parte do jogo. Se puder manter ali interesses e possivelmente reforçá-los com ligações internacionais, fazendo intervir capitais por outras vias, por exemplo, via Brasil, isso será a concretização da perspectiva neocolonialista.

Por outro lado, é preciso não esquecer que a colónia em que todos os grupos têm interesses mais fortes é aquela em que os dados não estão completamente lançados.  É de esperar que esses grupos não fiquem alheios à evolução do problema angolano e procurem integrar-se numa forma qualquer de neocolonialismo que, já no caso de Moçambique, será provavelmente muito mais difícil.

 

V.M. – Portanto, também não será de estranhar que seja relativamente ao caso de Angola que vai haver mais resistência à descolonização, até porque são aí muito fortes os interesses capitalistas internacionais.

J.M.P. – Angola é, de facto, um problema muito mais complexo e julgo que, quer o capitalismo português, quer o capitalismo internacional, e ambos em ligação, estão atentos.

 

V.M. – Você entende, portanto, que a perda das colónias não vai abalar muito o sistema capitalista português.

J.M.P. – Eu julgo que não. Os resultados mais palpáveis vão ser o aumento de preço de algumas matérias-primas, que acabarão, em última análise, por ser pagas pelo consumidor/trabalhador. De qualquer modo, o preço do algodão já tinha sido liberalizado no regime anterior, o do açúcar estava para ser liberalizado em 30 de Abril. No fundo, tudo vai na integração do capitalismo português no capitalismo internacional.

 

V.M. – Mas parece que a sua fraca integração no sistema capitalista internacional não lhe deixa grande margem para se defender das perdas que vai sofrer nas colónias, porque, apesar de tudo, alguma coisa vai perder.

J.M.P. – Após o 25 de Abril, há uma outra facilidade de estabelecimento de relações. Fala-se muito nos mercados de Leste, fala-se muito nos mercados africanos de países com quem não tínhamos relações. Há todo um campo possível onde o capitalismo português pode jogar. Aliás, já várias declarações foram feitas nesse sentido. Ainda recentemente o secretário de Estado da Indústria chamou a atenção para esses aspectos.  Há agora toda uma abertura em relação a Portugal que pode vir a compensar quaisquer prejuízos. Isto, claro, do ponto de vista do capitalismo, do ponto de vista da classe dominante. Porque há toda uma outra série de condicionalismos de luta política interna que podem contrariar todas estas estratégias. Mas, no quadro de uma estratégia global do capitalismo, penso que as condições abertas pelo 25 de Abril  são mais favoráveis do que as do regime anterior. Resta que, subjectivamente, os detentores do capital sejam capazes de assumir essas condições objectivas. Ora, estando nós numa fase em que é bem claro o primado da instância política, trata-se de saber como actuarão politicamente...

 

ESTABELECER A “GESTÃO DA LUTA DE CLASSES”

 

V.M. – Você acaba de bater num ponto que entronca numa questão que eu lhe queria pôr e que é, digamos, a da inserção da estratégia do capitalismo português na actual fase do processo político. Como é que ele vai adaptar-se e como é que ele vai jogar? É corrente a tese, e já falámos disso no decorrer desta entrevista, de que o regime fascista já não servia os interesses do capitalismo nacional e do seu desenvolvimento e de que o golpe do 25 de Abril lhe era necessário. Mas neste momento ainda não é muito clara a estratégia dos grupos capitalistas perante a nova situação política. Estou-me a lembrar daquele anúncio do M.D.E/S (Movimento Dinamizador da Empresa/Sociedade) que apareceu publicamente, assim como a grande resposta dos grandes grupos capitalistas nacionais à nova situação política. Mas aquilo tinha um aspecto um bocado caricato; não se tratava de um projecto válido de desenvolvimento capitalista. Os grandes empresários vinham declarar-se dispostos a fazer investimentos, alguns dos quais já estavam mais que programados desde o regime fascista e muitos outros nem sequer apontavam para sectores dinâmicos de desenvolvimento industrial. Não se percebeu se aquilo era uma manobra de diversão ou o resultado de uma incapacidade de resposta à nova situação política. Ora V. no seu livro até afirma que estavam criadas as condições económicas para se chegar a uma solução política como a do 25 de Abril.

J.M.P. – Eu pego exactamente nessa ideia. Creio que, com poucas excepções, o 25 de Abril terá sido bem recebido (ou, pelo menos, com “benévola” expectativa) pelos interesses capitalistas mais importantes. No dia 26 de Abril os grandes empresários não estariam propriamente em pânico.  Mas nas semanas que se seguiram, no mês de Maio, a explosão popular, as lutas que se desencadearam imediatamente, o aparecimento de forças políticas até aí clandestinas que as pessoas não estavam habituadas a olhar cara a cara, tudo isso fez de Maio um mês psicologicamente difícil para os detentores do capital, que se terão imaginado nas vésperas de uma revolução social que iria francamente mais longe do que eles desejavam. A esse clima do mês de Maio só faltou aquilo que parecia ser o seu corolário indispensável, isto é, a decisão por parte do poder político de tomar um certo número de medidas “fortes” nos campos económico e social. Isto não é de maneira nenhuma dizer que estavam reunidas em Portugal as condições para essa revolução social. De qualquer modo, uma coisa é certa: o próprio grande capital terá esperado que, nos dois primeiros meses após o 25 de Abril, fossem tomadas medidas de ataque bastante directo ao seu poder económico: nacionalizações, controle de crédito; noutro campo, medidas anunciadoras de uma reforma agrária. Nada disto surgiu.

 

V.M. – Nem sequer chegaram a surgir as medidas antimonopolistas previstas no programa do Movimento das Forças Armadas.

J.M.P. – Nada disso aconteceu. Chegou a esboçar-se uma lei que daria ao Estado uma maioria de capital em certo número de sectores da economia portuguesa. Eu julgo, e penso que tenho elementos seguros para o dizer, que até para isso os detentores do capital estavam preparados, isto é, encontravam-se francamente na defensiva. Aí creio que jogaram muito na propaganda do caos económico, no que de resto foram apoiados pelos próprios partidos da coligação, pelo Governo, e julgo que terão deliberadamente exagerado a imagem do seu próprio pânico. Conseguiram assustar o Governo ao ponto de paralisar qualquer acção projectada naquele campo.

Passados cinco meses continua a não ter sido sequer definida uma simples política industrial, de investimentos públicos, de controle de crédito. Pelo contrário, já foram publicadas uma lei de greve, uma lei de reunião e de associação. Há toda uma preocupação mais no campo da institucionalização de uma nova legalidade...

 

V.M. – ... Que tende a reprimir a iniciativa das classes trabalhadoras.

J.M.P. – Tendencialmente é isso que se tem visto. Ora, voltando à sua pergunta, parece-me difícil, neste momento, falar de uma estratégia global, uma estratégia consciente do capital como classe.  Neste momento e mesmo tendo em conta que o 28 de Setembro a terá voltado a colocar na defensiva, se se pudesse falar de uma estratégia da grande burguesia portuguesa, ela resumir-se-ia nos seguintes pontos: por um lado estabelecer a institucionalização de um sindicalismo razoável, com quem se possa dialogar, com quem se possa discutir... Um sindicalismo que possa ele próprio evitar lutas de fábrica desordenadas. O capital precisa de ordem e pressente (independentemente de “aventuras” cujo triunfo não deixaria de aproveitar...) que, nas condições actuais, já não pode ser a ordem fascista. É uma ordem que ponha, frente a uma Confederação da Indústria, um sindicalismo organizado, ele mesmo também defensor de um progresso na ordem. A lei da greve já foi publicada, agora anuncia-se a lei sindical, está em vias de criar-se esse quadro institucional...

 

V.M. – De estabelecer as regras do jogo...

J.M.P. – ... Aquilo que eu chamaria a “gestão da luta de classes”. Um segundo ponto dessa estratégia da burguesia que se poderia delinear consiste em tirar partido, em várias linhas possíveis, simultaneamente das dificuldades das pequenas empresas, do desemprego e da inflação. Ora, tirar partido como? Por um lado, é uma forma de reforçar a concentração do capital. As falências, o desaparecimento de pequenas empresas com produtividade baixa e tecnologia atrasada só levam a reforçar uma estrutura capitalista moderna, reconvertendo alguns sectores. No que respeita ao desemprego, em qualquer sistema capitalista a funcionar normalmente, o aumento do desemprego tende a baixar a combatividade das classes trabalhadoras.

 

V.M. – E a baixar os níveis dos salários no mercado de trabalho.

J.M.P. – Exactamente. Depois aqui há vários mecanismos. Aposta-se em que , numa fase de desemprego, aqueles que conservam um emprego pensam duas vezes antes de fazer greve. Julgo que o capitalismo está a jogar no amortecimento das lutas dos trabalhadores através do espectro do desemprego, cálculo que, aliás, lhe pode sair errado. O mecanismo da inflação, pelo seu lado, vai fazer recuperar uma parte dos aumentos de salários concedidos e, em muitos casos, anulá-los e fazer manter uma certa taxa de lucro das empresas. O mecanismo inflacionista é, em princípio, sempre favorável ao capital e prejudicial para os trabalhadores. Mas também aqui, seria necessário controlar minimamente o processo. Resta saber se será possível...

 

V.M. – Isso acaba de verificar-se. As classes trabalhadoras e a sensibilidade popular aperceberam-se que depois dos aumentos dos salários se verificou uma escalada de preços que já “comeu” aqueles aumentos. Embora se tenha anunciado subidas de preços só de alguns produtos, estes são do tipo dos que se repercutem imediatamente em cadeia. É o caso dos adubos, combustíveis, etc. Aliás, o Primeiro-Ministro afirmou há dias que a inflação não iria ser travada, relacionando a necessidade de inflação com o combate ao desemprego.

J.M.P. – Para absorver o desemprego há que fazer investimentos e o investimento é, em si, um acto inflacionista (e mais ainda se for aplicado em obras públicas), na medida em que cria rendimentos muito antes de que a produção resultante venha aumentar a oferta.

Mas vejamos o caso do M.D.E/S. Dentro desta estratégia capitalista, e não tomando o Governo medidas destinadas a reactivar a economia, a contrariar esse famoso caos económico de que tanto se fala, julgo que o programa do M.D.E/S vem fundamentalmente preencher uma função de propaganda, de forma a tentar convencer os mais timoratos que só quem pode salvar este país são os capitalistas, porque são eles quem dispõe dos meios financeiros.  Esta jogada representou de certo modo a passagem da defensiva, em que toda essa gente se encontrou depois do pânico dos primeiros tempos, a um primeiro passo da ofensiva, ofensiva essa a prosseguir em termos políticos, no sentido de conduzir a uma democracia com um governo de direita. Na perspectiva do jogo eleitoral, o grande capital financiará determinado partido (ou partidos), e defenderá um governo democrático mais ou menos autoritário, se possível mais que menos. Mas, perguntar-se-á: como se insere nisto a escalada que conduziu ao 28 de Setembro? Parece evidente, até pelo simples exame do nome dos principais detidos, que os sectores activistas eram precisamente aqueles que liguei, no meu livro, às ideologias “passadistas” e ao “capitalismo tradicional”: sectores do capital aristocrático latifundiário e de base colonial,  gente cujos ancestrais privilégios os impedem por completo de ultrapassar o tal “bloqueio ideológico” que levou o “fascismo” ao impasse. Não creio que o sector do grande capital mais “avançado” se tenha directamente comprometido, se bem que, até pela densa malha de relações familiares, possa ter prestado discreto apoio financeiro a uma aventura que sabia perigosa e cujos frutos, a prazo, se afiguravam duvidosos. As imediatas declarações da Confederação da Indústria de apoio à ordem democrática e ao Governo fazem-me crer (sobretudo pelo seu conteúdo ideológico claramente “tecnocrático”) nesta interpretação.

O que não significa que não seja indispensável uma rigorosa vigilância, até pelos conhecidos apoios externos com que, para tais actos desesperados, os meios mais reaccionários sempre poderão contar, e que estão longe de ser para desprezar. De passagem, penso ser um grave erro político a identificação sistemática da “direita” com “fascismo”. Há forças sociais que é necessário combater politicamente, mas que não é possível apagar com uma borracha...

 

OS TRABALHADORES E A DINÂMICA CAPITALISTA

 

V.M. – Já aflorámos a questão do novo Estado Democrático vir a desempenhar um papel de árbitro ou regulador da luta de classes. Por outro lado, no seu livro V. adianta a hipótese (e eu digo hipótese porque isso foi escrito nos dias seguintes ao 25 de Abril) de no novo sistema político “se reforçar a interpenetração de interesses entre os grupos monopolistas e o Estado”, no sentido de uma racionalização do sistema capitalista. Pode desenvolver esta ideia?

J.M.P. – No fundo, trata-se de admitir que o capitalismo português virá a tentar o modelo que já tem vindo a desenvolver-se nos países mais avançados. Um aumento da intervenção do Estado na economia pode ser considerado uma estratégia antimonopolista ou outra coisa qualquer. Ora convém não esquecer que se há lei fundamental do sistema capitalista é aquela que impõe uma concentração de capital cada vez maior. Portanto, a existência de um sector de Estado importante que, aparentemente pode aparecer como um ataque ao poder do capital privado, normalmente tem até um efeito propulsor. No caso português, em que é conhecido o escasso dinamismo dos detentores do capital, a criação de um sector de Estado forte, se, por um lado, pode ser apresentado politicamente como um ataque ao poder monopolista, na realidade, a médio ou a longo prazo, poderá constituir um factor de dinamização e racionalização da economia capitalista. De qualquer modo, julgo que de um ponto de vista político, independentemente de ser apresentada como uma estratégia antimonopolista ou de se pensar que é ou que não é, teria sido importante que o Governo tivesse tomado um certo número de medidas bastante fortes no sentido de atingir certas bases da acumulação/concentração capitalista. De um ponto de vista da luta política em Portugal considero importante que isso tivesse sido feito muito rapidamente. É possível que as novas condições criadas pelo 28 de Setembro voltem a permitir uma intervenção deste tipo, que parecia cada vez mais impensável, à medida que o tempo corria...

 

V.M. – Em que sectores pensa que o Estado poderia ter intervindo?

J.M.P.- Na altura em que esses propósitos intervencionistas apareceram, ainda durante o primeiro Governo Provisório, eram, segundo creio, as minas, a siderurgia, os petróleos, a petroquímica, a distribuição de energia. De qualquer modo, ficava de fora o campo do crédito, questão que já referi. Não há dúvida que se controla muito melhor o capitalismo neste país nacionalizando seis grandes bancos do que nacionalizando seis grandes unidades industriais.

 

V.M. – Nacionalizar os bancos emissores que já eram praticamente do Estado não adianta praticamente nada.

J.M.P. – Pois não. O motor do crédito neste País, de todo o sistema financeiro, são os grandes bancos comerciais.

 

V.M. – Resta-me uma última questão, acerca do papel da classe trabalhadora no processo de evolução política, do próprio processo de evolução do capitalismo português.

J.M.P. – Já vimos que o projecto capitalista (ou será só o dos seus ideólogos tecnocratas?) em Portugal será o de adquirir uma certa estabilização dentro de uma democracia de tipo mais ou menos ocidental e adquirir aquilo a que poderemos chamar uma “velocidade de cruzeiro”, mais ou menos veloz conforme as circunstâncias internas e externas. Mas é claro que tal “projecto” pressupõe que a classe dominante se continua a assumir como “motor” da História e que assimila demasiado sumariamente as condições (económicas e políticas) em Portugal às que se verificam nas “democracias ocidentais”. Neste aspecto parece-me que o papel da classe trabalhadora deveria ser o do evitar que se atingisse esse regime de velocidade de cruzeiro em que, ao fim e ao cabo, a luta de classes se traduz por um certo jogo de gentlemen, que resolvem os seus conflitos a uma mesa de negociações e em que é o sistema capitalista que encontra aí a sua própria dinâmica. Por exemplo, relativamente à questão do desemprego: o capital aposta, como já vimos, em que a própria existência de um certo nível de desemprego fará baixar a combatividade dos trabalhadores.

 

V.M. – Mas, apesar de tudo, o desemprego está a ser um dos factores fundamentais do desenvolvimento da luta dos trabalhadores...

J.M.P. – Pois justamente, aí temos um terreno de luta privilegiado: partir de uma situação de desemprego crescente para incentivar a luta dos trabalhadores contra despedimentos, exigindo o direito ao trabalho. Não quero de modo nenhum aventurar-me a prever, neste momento, o que irão ser as lutas dos trabalhadores e qual será o nível de consciência política das lutas que poderão vir a desenvolver. De qualquer modo, uma coisa é certa: se os trabalhadores deixarem que o capitalismo atinja essa fase de “prosperidade na evolução”, uma certa dinâmica estável, terão perdido uma parte do que “capitalizaram” em Maio de 74, e que, politicamente, terão “readquirido” com o 28 de Setembro.

 

V.M. – Neste capítulo há quem defenda a tese de que falta à classe trabalhadora um partido que a leve a recusar ou a não aceitar pacificamente as regras que o capitalismo lhe quer impor.

J.M.P. – Desde Maio, multiplicaram-se em Portugal as lutas dos trabalhadores de uma forma espontânea, desordenada, em torno das mais variadas reivindicações, desde as mais “elementares” (subsistência imediata, aumentos salariais) às mais “avançadas” (condições de trabalho, contestação de hierarquias, saneamento político, autogestão, etc.). As organizações sindicais e as organizações políticas com mais forte implantação nas massas trabalhadoras têm tido por preocupação essencial enquadrar e pôr ordem nessas lutas, têm actuado sempre no sentido de as disciplinar “por cima”. Isto é, têm adoptado perante os trabalhadores a atitude paternalista, para não dizer autoritária, de lhes transmitir uma determinada linha política. E esta traduz-se muito simplesmente na adesão acrítica a tudo o que fizer o Governo provisório, a tudo o que fizer o M.F.A. Ora, se é certo que, pelo facto de em alguns sectores ou empresas os trabalhadores terem conduzido lutas exemplares de conteúdo político objectivo, não se deve daí concluir por um elevado grau de consciência política generalizado a todos os trabalhadores, não é menos certo que o aprofundamento dessa consciência, a capacidade de tradução política das lutas, têm de passar pelo desenvolvimento de um trabalho crítico e de uma articulação cada vez maior, tarefas  que parece difícil virem a ser assumidas por aquelas organizações. É, assim, inevitável que, a mais ou menos longo prazo, serão os próprios trabalhadores a dar-se conta disso, e que o partido de vanguarda que unificará essas lutas terá de partir ou inserir-se na “prática” que nelas se exerce. Isto é, será nessas lutas que se forjarão os líderes políticos, e não inversamente...

 

V.M. – Mas isso só será possível se essas lutas assumirem formas avançadas e se não se acantonarem na simples luta sindical de negociação do contrato de trabalho.

J.M.P. – A luta de classes é uma contraposição constante de uma legitimidade a uma legalidade. O problema do saneamento nas empresas privadas, por exemplo, em termos de legalidade não tem grande margem para discussão: o Estado não pode intervir nem exigir a substituição de um administrador de uma empresa privada. No entanto, os trabalhadores exigem-no e ninguém tem dúvidas de que é legítimo. É nestes momentos que se defrontam duas posições realmente antagónicas, que se confrontam: uma legitimidade e uma legalidade. É na medida em que situações destas se multipliquem e encontrem a sua expressão política, que eu penso se pode considerar que está a haver um avanço real na luta de classes.

 

V.M. – Mas quando eu lhe pus a questão também era noutro sentido, que era de considerar a possibilidade da luta de classes, feita no interior do sistema capitalista com regras bem definidas pela classe dominante, poder constituir ela própria um factor de dinamização do sistema.

J.M.P. – Um dos mais fortes aguilhões para o aumento da produtividade é a pressão constante no sentido de aumento de salários...

 

V.M. – Eu chamo a atenção para esta questão porque me parece que se os trabalhadores não têm consciência de que a sua luta se circunscreve a determinados limites estão a fazer o jogo da consolidação do sistema capitalista.

J.M.P. – O fundamental é ter sempre em vista a ultrapassagem dessas situações ou desses limites. Uma luta salarial efectivamente é indispensável, é correcta, é inelutável, mas é uma luta que, nas tais condições de “velocidade de cruzeiro”, é geralmente recuperável. Nas condições que se verificaram aqui em Maio já não é tão facilmente recuperável, é imediatamente (mesmo que “inconscientemente”) política e causa um choque num sistema que não está globalmente preparado para tal situação. A partir do momento em que se atinja uma certa estabilização, uma luta estritamente salarial é sempre recuperável pelos próprios mecanismos do sistema.

 

V.M. – Digamos que, em Maio, não só o sistema capitalista não estava preparado para absorver o choque das lutas populares que se desenvolveram, como as próprias classes trabalhadoras não estavam preparadas para as fazer avançar até ao limite da ruptura.

J.M.P. – Não tenho ilusões de que se esteja a viver uma situação pré-revolucionária. Estamos numa fase em que se fizeram efectivamente avanços fundamentais e conquistas que creio em grande medida irreversíveis (sob reserva do que disse atrás). A sua consolidação passa  simultaneamente por uma audácia política do Poder, que até agora lhe tem faltado, mas que julgo estar de novo na ordem do dia, e pela capacidade que vierem a demonstrar os sectores mais avançados do proletariado de, a partir das várias lutas pontuais, formular os elementos de uma estratégia política que igualmente lhes tem faltado. Estes dois aspectos, que de nenhum modo são independentes, bem como certos factores de ordem externa (que não se podem excluir, dada a inserção de Portugal num determinado “bloco” económico e político), determinarão em boa parte a evolução política a curto prazo, curto prazo esse obviamente decisivo pois nele se inclui a data-charneira de Março de 1975. Da conjugação dialéctica de todos estes elementos resultará a resposta à questão crucial: que tipo de democracia é (ou não é) possível em Portugal?