Os engenheiros em Portugal
Maria de Lurdes Rodrigues – Os engenheiros em Portugal, Profissionalização e protagonismo
– Celta Editora, Oeiras, 1999
Muita gente conhece alguns engenheiros, sem ter muita ideia do que fazem neste mundo
“os engenheiros”. Pouco se indagou ou escreveu sobre eles, de resto. Mas nas últimas
décadas, historiadores e economistas, ao analisarem as questões do desenvolvimento no
período salazarista, depararam-se com eles nos nossos anos 30 e 40, então arautos (uma
“vanguarda”, é certo) da electrificação e da industrialização. É agora a vez de a sociologia
meter mãos à obra e perscrutar-lhes, enquanto grupo, o percurso de uma “construção da
profissionalidade”.
Este excelente trabalho de Maria de Lurdes Rodrigues, ao afastar-se deliberadamente das
abordagens funcionalistas, que tendem a não reconhecer aos engenheiros o estatuto de
“profissão” (segundo o padrão dos “médicos” ou dos “advogados”), propõe-nos um
conceito de “profissão” mais alargado e complexo. Na verdade, os engenheiros são, no
essencial, assalariados em organizações, públicas ou privadas, e essa mesma especificidade
poderá, segundo a autora, conduzir ao “reconhecimento do papel das organizações
no processo de configuração” da profissão. As metodologias utilizadas são diversas e
entendidas como complementares, a elas correspondendo três sucessivas etapas na
apresentação do trabalho. Na primeira, acompanhamos os resultados de uma investigação
histórica, que nos mostra a evolução da afirmação do “grupo” desde os primórdios da
engenharia militar, no século passado, até aos nossos dias. Depois, temos o aprofundado
tratamento de um vasto inquérito socioprofissional aos diplomados de engenharia,
efectuado em 1994. Por fim, são-nos apresentados os resultados de um inquérito por
entrevista a centena e meia de engenheiros “em situação de trabalho” em organizações,
nomeadamente três grandes empresas privadas.
Está fora do âmbito deste texto determo-nos nas múltiplas pistas sugeridas pela valiosíssima
informação produzida. Refiramos apenas, no plano histórico, as sucessivas batalhas
para a conquista de um espaço e de um título próprios: primeiro, engenheiros civis vs
militares, até á primeira década do século; depois a interminável querela, que vem até aos
nossos dias, que opõe, enquanto verdadeira “questão social”, engenheiros e (hoje)
engenheiros técnicos (estes mudando periodicamente de nome, muito ao sabor de
conjunturas políticas, mas acirrando-se quase sempre mais os ânimos de cada vez que
nesse nome apareciam a palavras “engenheiro” ou “engenharia”); enfim a disputa
particular entre engenheiros civis e arquitectos, essa também não totalmente encerrada.
Nesta longo percurso saliente-se, aliás, o momento fundador da “engenharia moderna”
portuguesa que foi, em 1911, a criação do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de
Engenharia do Porto.
Quanto ao perfil socioprofissional na actualidade, mencione-se, no caso do inquérito
alargado, o tratamento de aspectos como a estrutura da “profissão” por especialidades,
escolas de origem dos diplomas, escalão etário, sexo, áreas de actividade principal,
estatuto jurídico e dimensão da entidade empregadora, situação hierárquica e índices de
receitas; a abordagem da questão da origem social, em que fica clara a diferenciação entre
engenheiros e engenheiros técnicos, seguida de uma análise factorial de correspondências
múltiplas que permite identificar as principais variáveis discriminantes, como sejam “a
oposição entre o mundo das empresas e o mundo do ensino e da função pública” e a que
decorre do grau/diploma, e determinar grupos de categorias de variáveis definidores de
quatro “espaços” bem diferenciados de origem/ocupação dos diplomados em engenharia;
enfim as questões relativas à mobilidade e carreiras profissionais, onde se conclui, já sem
demasiada surpresa, que à ascensão na carreira corresponde o afastamento de funções
técnicas : “a passagem de funções técnicas a funções de chefia resume o essencial das
carreiras dos engenheiros, nela se define o sucesso ou insucesso do percurso
profissional” – mas haveria ainda que ver que componente técnica têm ou não ainda essas
funções de chefia (um Director de produção, ou um Administrador de uma empresa de
projectos de engenharia, são exemplos de que se pode chegar a topos de chefia sem sair
em definitivo da área técnica).
Enfim, no inquérito por entrevista a diplomados em engenharia em três empresas de
grande dimensão (a menor tem 150 diplomados, a maior 1020, casos raros no panorama
português), retomam-se os problemas de carreiras e mobilidade, mas complementados por
outras áreas de análise, como as de autonomia e participação, de modalidades de divisão
do trabalho e de natureza do saber posto em jogo no exercício das actividades profissionais.
Apresentado, pois, o trabalho, em linhas muito gerais. Sucede que, quando, como o autor
destas linhas, se faz parte do universo observado, apetece reflectir um pouco sobre
algumas questões.
Em primeiro lugar, justamente a questão dos saberes. Ela atravessa, aliás, todo o trabalho
de M. de Lurdes Rodrigues, e constitui mesmo uma das permanentes interrogações da
investigadora : em que medida a actividade desenvolvida pelos engenheiros se aproxima
ou afasta “dos nichos de produção/aplicação do conhecimento técnico-científico”, ou, por
outras palavras, em que medida a ciência e a tecnologia estão ou mais ou menos presentes
no exercício das funções desempenhadas pelos engenheiros. Na verdade, na já longa
guerrilha com os engenheiros técnicos, desde quando estes ainda se chamavam “condutores”,
o argumento sempre invocado pelos engenheiros (e também pelos estudantes por
altura da greve de 1925-26) foi o da superioridade científica dos seus conhecimentos, em
particular o seu domínio das matemáticas. Quem os não tivesse obviamente não poderia
assumir nas instituições públicas ou privadas posições cuja responsabilidade técnica os
exigia – argumento repetido por sucessivas gerações. Não surpreenderá, assim, alguma
perplexidade da própria investigadora quando, através do seu inquérito, constata, por
parte da maioria dos inquiridos “a reificação da experiência e das competências adquiridas
nas situações de trabalho a alta valorização atribuída à experiência profissional, acompanhada
da denúncia da excessiva formação teórica e da insuficiente formação prática no
ensino da engenharia em Portugal”. E mais : “são cerca de 80% os engenheiros licenciados
a considerar que os seus conhecimentos técnicos são sub-utilizados e que parte das
suas tarefas poderiam ser desenvolvidas por alguém menos qualificado”. Arrisco pensar
que a isto não será alheio o facto de a economia portuguesa se ter mantido tão tecnologicamente
dependente do exterior que raramente pôde (com excepção da engenharia civil, v.
ponto seguinte), oferecer aos engenheiros muito mais, no plano técnico, do que tarefas de
execução/especificação/controle/pla- neamento, ainda que qualificadas, em detrimento das
de concepção/cálculo/projecto de alguma complexidade.
Se tivermos ainda em conta que, desde sempre, o número de engenheiros se manteve
muito superior ao de engenheiros técnicos, absurda inversão (numa perspectiva de
mercado) bem salientada no estudo, então será compreensível que uma boa parte dos
engenheiros exerçam actividades que normalmente poderiam ser ocupadas por engenheiros
técnicos, buscando aqueles a diferenciação em tarefas não-técnicas qualificadas que
lhes poderão dar acesso aos níveis mais altos da hierarquia. Compreensível também que
os engenheiros técnicos sempre se tenham reclamado igualmente competentes para o
desempenho das tarefas técnicas que predominam no mercado.
O perfil de carreiras traçado neste trabalho confirma-o : a ascensão dos engenheiros na
hierarquia das organizações faz-se no sentido da administração/gestão e não no sentido de
tarefas técnico-científicas de maior complexidade. E mesmo hoje, quando as actividades
de ID já têm alguma expressão, as carreiras técnico-científicas permanecem muito
confinadas aos percursos intra-universitários, com escassa ligação ao mundo das
empresas. M.L.Rodrigues conclui a dado passo : “Vimos como os saberes mobilizados,
tal como os papéis desempenhados pelos diplomados de engenharia nas organizações, não
são exclusivamente técnicos – as dimensões relacionais presentes nas suas competências,
as suas expectativas de poder, autonomia e participação fazem deles homens de confiança
das organizações e das entidades empregadoras”. Por isso mesmo, os próprios entrevistados,
quando confrontados com a sua própria prática, invocam muitas vezes como razões
para a imprescindibilidade do diploma as “de ordem social ou simbólica, como o estatuto
ou as expectativas dos clientes, a ordem de valores dos negócios em jogo, a credibilidade,
etc.”
Estas considerações prendem-se com o meu segundo tema, esse não abordado neste
trabalho : a questão das especialidades. Embora se indiquem as estruturas do “grupo” por
especialidades nos vários períodos estudados, a variável “especialidade” não foi introduzida
nas análises estatísticas efectuadas, nem no tratamento do inquérito directo. Ora se há
coisa que “separa” os engenheiros, desde a escola até ao mercado de trabalho, é justamente
a especialidade, criando sub-identificações próprias e, julgo que em boa medida
(mas haveria que confirmá-lo), influindo nas próprias carreiras. Basta ter-se em conta que,
de entre as especialidades “clássicas” (as cinco que se mantiveram desde 1911 até meados
dos anos 80), apenas uma – a engenharia civil – pôde, desde há muito, oferecer perspectivas
de uma carreira profissional completa. Quer-se dizer com isto que um engenheiro civil
pode aspirar a exercer, ao longo da sua carreira, funções de concepção, projecto e obra,
sem sair da área especificamente técnica. Uma larga maioria das grandes obras de
engenharia civil deste século (e sobretudo da segunda metade), como barragens, pontes
(de betão), estradas e portos ou grandes obras de saneamento foram projectadas de raiz
por engenheiros portugueses, sem falar, é claro, no mundo interminável dos edifícios (e,
de passagem, é a este último domínio que praticamente se confina a disputa engenheiros
vs arquitectos). É também na área da engenharia civil que se desenvolve, desde os anos
40, um assinalável esforço de investigação, com a criação no LNEC de uma “escola
portuguesa” de engenharia hidráulica, que adquiriu projecção internacional : até mesmo a
carreira de investigação se abriu então aos engenheiros civis. É claro que tudo isto teve
que ver, uma vez mais, com o lento processo de desenvolvimento industrial do país : até
aos anos 40, praticamente, o mercado para os engenheiros era, no essencial, o da construção
civil e obras públicas (incluindo os lugares de função pública a elas associados) e
ainda hoje é esta a especialidade que conta com maior número de engenheiros. Não é por
acaso que os nomes grandes da engenharia portuguesa – os Manuel Rocha, Laginha
Serafim, Edgar Cardoso, e tantos outros – são praticamente todos engenheiros civis.
No polo oposto, temos os engenheiros químico-industriais, vocacionados, em teoria, para
as chamadas “indústrias de processo". Neste caso, dada a quase total ausência de
autonomia tecnológica nesse tipo de actividade em Portugal, nunca foi possível aspirarem
a tarefas de concepção e de projecto, tendo-se limitado a ser bons operadores de fábricas
projectadas e fornecidas pelos licenciadores estrangeiros (ou funcionários públicos, ou
professores, ou consultores). Os mecânicos e os electrotécnicos estão numa situação
intermédia, com domínio do projecto em algumas áreas significativas, mas a ambos
primeiros falta em boa parte a experiência (vital nos países industrializados) do projecto de
máquinas industriais, que na sua maioria são importadas. O surto mais recente da
especialidade “electrónica e engenharia de sistemas” abre hoje novas perspectivas à
Segunda dessas especialidades. Quanto aos mineiros, a sua expressão é diminuta, como o
é hoje a própria actividade mineira (excluindo as pedreiras) em Portugal.
Em termos de mercado de emprego, também esta diferenciação poderá ser importante.
Enquanto os engenheiros civis têm, se assim se pode dizer, um sector industrial “por sua
conta” – a indústria da construção, complementada pelos gabinetes de projecto e pelos
serviços públicos de lançamento e controle de obras -, onde podem “experimentar” todas
as fases de uma carreira técnica, onde podem transitar da obra para o projecto, ou da
execução para a fiscalização, do pequeno para o grande empreiteiro, etc, sempre em
contacto com outros engenheiros civis, com as restantes especialidades não sucederá o
mesmo. Afigura-se-me que, nestas últimas, o mercado de emprego é sectorialmente muito
mais diversificado, o engenheiro trabalha geralmente muito mais isolado. Único engenheiro
em muitas empresas (das que têm engenheiros), é chamado com frequência a
resolver problemas, técnicos ou outros, que não são da sua especialidade, mas em
contrapartida é frequente entrar logo para funções de chefia ou sub-chefia, e pode
eventualmente aspirar a uma carreira ascensional relativamente rápida (na mesma ou
noutra empresa). Suspeito também que os engenheiros não-civis terão,
proporcionalmente, uma presença muito menor que os civis no sector público nãoempresarial.
A ser assim, e haveria que demonstrá-lo, esta diferente relação com os saberes adquiridos
na escola e com os mercados de emprego poderiam configurar percursos profissionais
também eles significativamente distintos. Dito isto, cabe-me observar que uma boa tese
tem sempre esta imensa virtude : abrir para novas investigações justamente suscitadas
pelos aspectos que a ela não coube desenvolver. E, já agora, se neste trabalho, compreensivel
e deliberadamente, se excluíram da análise as relações entre o percurso dos engenheiros
e o processo de desenvolvimento económico (e especificamente industrial) do país,
pois tal não era o seu objectivo, vejo aí também matéria de muito interesse para trabalhos
futuros.
Finalmente, algumas breves palavras sobre o associativismo dos engenheiros. Na
verdade, se o grau de empenho associativo pode de algum modo ser um indicador de um
“sentido de profissão”, ou mesmo de “comunidade profissional”, julgo que a informação
produzida é de molde a não ter muitas ilusões. A primitiva AECP (Associação dos
Engenheiros Civis Portugueses) não tem, em 1911, qualquer intervenção no momento
fundamental para a profissão que foi a criação das grandes escolas de engenharia, tendo
mantido a esse respeito um silêncio “entre o expectante e o desconfiado”; em 1916
queixa-se da “pouca afluência dos sócios”; em 1925-26, quem vai fazer greve contra a
designação de “engenheiros auxiliares” dada aos diplomados em escolas não-universitárias
são os estudantes do IST; enfim, em 1936 aceita sem grande alarido a sua suspensão
(na prática, o encerramento) em benefício da nova Ordem dos Engenheiros, organismo
de inscrição obrigatória inserido no dispositivo corporativo. Quanto a esta, não
surpreenderá o pouco interesse que por ela manifestaram os engenheiros, mas já se
afigura mais estranho que em plena democracia, quando em 1992 se volta à inscrição
obrigatória, se constate que perto de 10 mil engenheiros não eram membros (basta ver o
salto no número de membros de um ano para o outro). Mais do que isso, não houve
qualquer burborinho, nessa altura, pelo facto de a Ordem voltar à órbita do Estado, com o
estatuto de Associação Pública. Julgo que a maioria dos engenheiros, de resto, desconhece
totalmente ser esse o estatuto da Ordem – era, aliás, o meu caso antes de ler este
trabalho.
Na verdade, fica-se com o sentimento, de que o que verdadeiramente mobilizou os
engenheiros ao longo deste século foi sobretudo a defesa do título, do diploma (de que,
aliás, ninguém lhes pede prova), com o que isso tem de simbólico, de oportunidades de
empregos e carreiras e de reconhecimento social – desde aquele que os faz ouvirem-se
várias vezes ao dia tratar por “sr. engº”, pessoa que se suspeita ter algum poder e estar
“bem relacionada”. A dado passo M.L. Rodrigues exprime-o desta maneira : “A forma
como perdura a sua influência [da origem social] na determinação de percursos e carreiras
profissionais (...) revela a existência de mecanismos diversos de fechamento ou de
segmentação que, em paralelo com a extensão e diversificação dos campos de actividade,
garantem que, apesar do aumento do número de membros, a profissão se mantenha como
um espaço de reprodução de elites”.
A terminar. Estranha profissão esta que ganharia consistência na diluição dos saberes e na
diversificação de actividades, e profissionalidade no exercício de tarefas não-profissionais.
Mas lá estou eu a usar a palavra profissional em sentido restrito. Responde-me antecipadamente
a autora : há que “perceber o papel dos diferentes agentes na construção da
profissionalidade do grupo. Em relação aos engenheiros, pode dizer-se que não está
inscrita na natureza do seu trabalho ou da sua actividade, dentro ou fora das organizações,
a impossibilidade da sua profissionalização”. É matéria que terei de deixar para ser
debatida entre sociólogos.
Os engenheiros em Portugal
Maria de Lurdes Rodrigues – Os engenheiros em Portugal, Profissionalização e protagonismo
– Celta Editora, Oeiras, 1999
Muita gente conhece alguns engenheiros, sem ter muita ideia do que fazem neste mundo
“os engenheiros”. Pouco se indagou ou escreveu sobre eles, de resto. Mas nas últimas
décadas, historiadores e economistas, ao analisarem as questões do desenvolvimento no
período salazarista, depararam-se com eles nos nossos anos 30 e 40, então arautos (uma
“vanguarda”, é certo) da electrificação e da industrialização. É agora a vez de a sociologia
meter mãos à obra e perscrutar-lhes, enquanto grupo, o percurso de uma “construção da
profissionalidade”.
Este excelente trabalho de Maria de Lurdes Rodrigues, ao afastar-se deliberadamente das
abordagens funcionalistas, que tendem a não reconhecer aos engenheiros o estatuto de
“profissão” (segundo o padrão dos “médicos” ou dos “advogados”), propõe-nos um
conceito de “profissão” mais alargado e complexo. Na verdade, os engenheiros são, no
essencial, assalariados em organizações, públicas ou privadas, e essa mesma especificidade
poderá, segundo a autora, conduzir ao “reconhecimento do papel das organizações
no processo de configuração” da profissão. As metodologias utilizadas são diversas e
entendidas como complementares, a elas correspondendo três sucessivas etapas na
apresentação do trabalho. Na primeira, acompanhamos os resultados de uma investigação
histórica, que nos mostra a evolução da afirmação do “grupo” desde os primórdios da
engenharia militar, no século passado, até aos nossos dias. Depois, temos o aprofundado
tratamento de um vasto inquérito socioprofissional aos diplomados de engenharia,
efectuado em 1994. Por fim, são-nos apresentados os resultados de um inquérito por
entrevista a centena e meia de engenheiros “em situação de trabalho” em organizações,
nomeadamente três grandes empresas privadas.
Está fora do âmbito deste texto determo-nos nas múltiplas pistas sugeridas pela valiosíssima
informação produzida. Refiramos apenas, no plano histórico, as sucessivas batalhas
para a conquista de um espaço e de um título próprios: primeiro, engenheiros civis vs
militares, até á primeira década do século; depois a interminável querela, que vem até aos
nossos dias, que opõe, enquanto verdadeira “questão social”, engenheiros e (hoje)
engenheiros técnicos (estes mudando periodicamente de nome, muito ao sabor de
conjunturas políticas, mas acirrando-se quase sempre mais os ânimos de cada vez que
nesse nome apareciam a palavras “engenheiro” ou “engenharia”); enfim a disputa
particular entre engenheiros civis e arquitectos, essa também não totalmente encerrada.
Nesta longo percurso saliente-se, aliás, o momento fundador da “engenharia moderna”
portuguesa que foi, em 1911, a criação do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de
Engenharia do Porto.
Quanto ao perfil socioprofissional na actualidade, mencione-se, no caso do inquérito
alargado, o tratamento de aspectos como a estrutura da “profissão” por especialidades,
escolas de origem dos diplomas, escalão etário, sexo, áreas de actividade principal,
estatuto jurídico e dimensão da entidade empregadora, situação hierárquica e índices de
receitas; a abordagem da questão da origem social, em que fica clara a diferenciação entre
engenheiros e engenheiros técnicos, seguida de uma análise factorial de correspondências
múltiplas que permite identificar as principais variáveis discriminantes, como sejam “a
oposição entre o mundo das empresas e o mundo do ensino e da função pública” e a que
decorre do grau/diploma, e determinar grupos de categorias de variáveis definidores de
quatro “espaços” bem diferenciados de origem/ocupação dos diplomados em engenharia;
enfim as questões relativas à mobilidade e carreiras profissionais, onde se conclui, já sem
demasiada surpresa, que à ascensão na carreira corresponde o afastamento de funções
técnicas : “a passagem de funções técnicas a funções de chefia resume o essencial das
carreiras dos engenheiros, nela se define o sucesso ou insucesso do percurso
profissional” – mas haveria ainda que ver que componente técnica têm ou não ainda essas
funções de chefia (um Director de produção, ou um Administrador de uma empresa de
projectos de engenharia, são exemplos de que se pode chegar a topos de chefia sem sair
em definitivo da área técnica).
Enfim, no inquérito por entrevista a diplomados em engenharia em três empresas de
grande dimensão (a menor tem 150 diplomados, a maior 1020, casos raros no panorama
português), retomam-se os problemas de carreiras e mobilidade, mas complementados por
outras áreas de análise, como as de autonomia e participação, de modalidades de divisão
do trabalho e de natureza do saber posto em jogo no exercício das actividades profissionais.
Apresentado, pois, o trabalho, em linhas muito gerais. Sucede que, quando, como o autor
destas linhas, se faz parte do universo observado, apetece reflectir um pouco sobre
algumas questões.
Em primeiro lugar, justamente a questão dos saberes. Ela atravessa, aliás, todo o trabalho
de M. de Lurdes Rodrigues, e constitui mesmo uma das permanentes interrogações da
investigadora : em que medida a actividade desenvolvida pelos engenheiros se aproxima
ou afasta “dos nichos de produção/aplicação do conhecimento técnico-científico”, ou, por
outras palavras, em que medida a ciência e a tecnologia estão ou mais ou menos presentes
no exercício das funções desempenhadas pelos engenheiros. Na verdade, na já longa
guerrilha com os engenheiros técnicos, desde quando estes ainda se chamavam “condutores”,
o argumento sempre invocado pelos engenheiros (e também pelos estudantes por
altura da greve de 1925-26) foi o da superioridade científica dos seus conhecimentos, em
particular o seu domínio das matemáticas. Quem os não tivesse obviamente não poderia
assumir nas instituições públicas ou privadas posições cuja responsabilidade técnica os
exigia – argumento repetido por sucessivas gerações. Não surpreenderá, assim, alguma
perplexidade da própria investigadora quando, através do seu inquérito, constata, por
parte da maioria dos inquiridos “a reificação da experiência e das competências adquiridas
nas situações de trabalho a alta valorização atribuída à experiência profissional, acompanhada
da denúncia da excessiva formação teórica e da insuficiente formação prática no
ensino da engenharia em Portugal”. E mais : “são cerca de 80% os engenheiros licenciados
a considerar que os seus conhecimentos técnicos são sub-utilizados e que parte das
suas tarefas poderiam ser desenvolvidas por alguém menos qualificado”. Arrisco pensar
que a isto não será alheio o facto de a economia portuguesa se ter mantido tão tecnologicamente
dependente do exterior que raramente pôde (com excepção da engenharia civil, v.
ponto seguinte), oferecer aos engenheiros muito mais, no plano técnico, do que tarefas de
execução/especificação/controle/pla- neamento, ainda que qualificadas, em detrimento das
de concepção/cálculo/projecto de alguma complexidade.
Se tivermos ainda em conta que, desde sempre, o número de engenheiros se manteve
muito superior ao de engenheiros técnicos, absurda inversão (numa perspectiva de
mercado) bem salientada no estudo, então será compreensível que uma boa parte dos
engenheiros exerçam actividades que normalmente poderiam ser ocupadas por engenheiros
técnicos, buscando aqueles a diferenciação em tarefas não-técnicas qualificadas que
lhes poderão dar acesso aos níveis mais altos da hierarquia. Compreensível também que
os engenheiros técnicos sempre se tenham reclamado igualmente competentes para o
desempenho das tarefas técnicas que predominam no mercado.
O perfil de carreiras traçado neste trabalho confirma-o : a ascensão dos engenheiros na
hierarquia das organizações faz-se no sentido da administração/gestão e não no sentido de
tarefas técnico-científicas de maior complexidade. E mesmo hoje, quando as actividades
de ID já têm alguma expressão, as carreiras técnico-científicas permanecem muito
confinadas aos percursos intra-universitários, com escassa ligação ao mundo das
empresas. M.L.Rodrigues conclui a dado passo : “Vimos como os saberes mobilizados,
tal como os papéis desempenhados pelos diplomados de engenharia nas organizações, não
são exclusivamente técnicos – as dimensões relacionais presentes nas suas competências,
as suas expectativas de poder, autonomia e participação fazem deles homens de confiança
das organizações e das entidades empregadoras”. Por isso mesmo, os próprios entrevistados,
quando confrontados com a sua própria prática, invocam muitas vezes como razões
para a imprescindibilidade do diploma as “de ordem social ou simbólica, como o estatuto
ou as expectativas dos clientes, a ordem de valores dos negócios em jogo, a credibilidade,
etc.”
Estas considerações prendem-se com o meu segundo tema, esse não abordado neste
trabalho : a questão das especialidades. Embora se indiquem as estruturas do “grupo” por
especialidades nos vários períodos estudados, a variável “especialidade” não foi introduzida
nas análises estatísticas efectuadas, nem no tratamento do inquérito directo. Ora se há
coisa que “separa” os engenheiros, desde a escola até ao mercado de trabalho, é justamente
a especialidade, criando sub-identificações próprias e, julgo que em boa medida
(mas haveria que confirmá-lo), influindo nas próprias carreiras. Basta ter-se em conta que,
de entre as especialidades “clássicas” (as cinco que se mantiveram desde 1911 até meados
dos anos 80), apenas uma – a engenharia civil – pôde, desde há muito, oferecer perspectivas
de uma carreira profissional completa. Quer-se dizer com isto que um engenheiro civil
pode aspirar a exercer, ao longo da sua carreira, funções de concepção, projecto e obra,
sem sair da área especificamente técnica. Uma larga maioria das grandes obras de
engenharia civil deste século (e sobretudo da segunda metade), como barragens, pontes
(de betão), estradas e portos ou grandes obras de saneamento foram projectadas de raiz
por engenheiros portugueses, sem falar, é claro, no mundo interminável dos edifícios (e,
de passagem, é a este último domínio que praticamente se confina a disputa engenheiros
vs arquitectos). É também na área da engenharia civil que se desenvolve, desde os anos
40, um assinalável esforço de investigação, com a criação no LNEC de uma “escola
portuguesa” de engenharia hidráulica, que adquiriu projecção internacional : até mesmo a
carreira de investigação se abriu então aos engenheiros civis. É claro que tudo isto teve
que ver, uma vez mais, com o lento processo de desenvolvimento industrial do país : até
aos anos 40, praticamente, o mercado para os engenheiros era, no essencial, o da construção
civil e obras públicas (incluindo os lugares de função pública a elas associados) e
ainda hoje é esta a especialidade que conta com maior número de engenheiros. Não é por
acaso que os nomes grandes da engenharia portuguesa – os Manuel Rocha, Laginha
Serafim, Edgar Cardoso, e tantos outros – são praticamente todos engenheiros civis.
No polo oposto, temos os engenheiros químico-industriais, vocacionados, em teoria, para
as chamadas “indústrias de processo". Neste caso, dada a quase total ausência de
autonomia tecnológica nesse tipo de actividade em Portugal, nunca foi possível aspirarem
a tarefas de concepção e de projecto, tendo-se limitado a ser bons operadores de fábricas
projectadas e fornecidas pelos licenciadores estrangeiros (ou funcionários públicos, ou
professores, ou consultores). Os mecânicos e os electrotécnicos estão numa situação
intermédia, com domínio do projecto em algumas áreas significativas, mas a ambos
primeiros falta em boa parte a experiência (vital nos países industrializados) do projecto de
máquinas industriais, que na sua maioria são importadas. O surto mais recente da
especialidade “electrónica e engenharia de sistemas” abre hoje novas perspectivas à
Segunda dessas especialidades. Quanto aos mineiros, a sua expressão é diminuta, como o
é hoje a própria actividade mineira (excluindo as pedreiras) em Portugal.
Em termos de mercado de emprego, também esta diferenciação poderá ser importante.
Enquanto os engenheiros civis têm, se assim se pode dizer, um sector industrial “por sua
conta” – a indústria da construção, complementada pelos gabinetes de projecto e pelos
serviços públicos de lançamento e controle de obras -, onde podem “experimentar” todas
as fases de uma carreira técnica, onde podem transitar da obra para o projecto, ou da
execução para a fiscalização, do pequeno para o grande empreiteiro, etc, sempre em
contacto com outros engenheiros civis, com as restantes especialidades não sucederá o
mesmo. Afigura-se-me que, nestas últimas, o mercado de emprego é sectorialmente muito
mais diversificado, o engenheiro trabalha geralmente muito mais isolado. Único engenheiro
em muitas empresas (das que têm engenheiros), é chamado com frequência a
resolver problemas, técnicos ou outros, que não são da sua especialidade, mas em
contrapartida é frequente entrar logo para funções de chefia ou sub-chefia, e pode
eventualmente aspirar a uma carreira ascensional relativamente rápida (na mesma ou
noutra empresa). Suspeito também que os engenheiros não-civis terão,
proporcionalmente, uma presença muito menor que os civis no sector público nãoempresarial.
A ser assim, e haveria que demonstrá-lo, esta diferente relação com os saberes adquiridos
na escola e com os mercados de emprego poderiam configurar percursos profissionais
também eles significativamente distintos. Dito isto, cabe-me observar que uma boa tese
tem sempre esta imensa virtude : abrir para novas investigações justamente suscitadas
pelos aspectos que a ela não coube desenvolver. E, já agora, se neste trabalho, compreensivel
e deliberadamente, se excluíram da análise as relações entre o percurso dos engenheiros
e o processo de desenvolvimento económico (e especificamente industrial) do país,
pois tal não era o seu objectivo, vejo aí também matéria de muito interesse para trabalhos
futuros.
Finalmente, algumas breves palavras sobre o associativismo dos engenheiros. Na
verdade, se o grau de empenho associativo pode de algum modo ser um indicador de um
“sentido de profissão”, ou mesmo de “comunidade profissional”, julgo que a informação
produzida é de molde a não ter muitas ilusões. A primitiva AECP (Associação dos
Engenheiros Civis Portugueses) não tem, em 1911, qualquer intervenção no momento
fundamental para a profissão que foi a criação das grandes escolas de engenharia, tendo
mantido a esse respeito um silêncio “entre o expectante e o desconfiado”; em 1916
queixa-se da “pouca afluência dos sócios”; em 1925-26, quem vai fazer greve contra a
designação de “engenheiros auxiliares” dada aos diplomados em escolas não-universitárias
são os estudantes do IST; enfim, em 1936 aceita sem grande alarido a sua suspensão
(na prática, o encerramento) em benefício da nova Ordem dos Engenheiros, organismo
de inscrição obrigatória inserido no dispositivo corporativo. Quanto a esta, não
surpreenderá o pouco interesse que por ela manifestaram os engenheiros, mas já se
afigura mais estranho que em plena democracia, quando em 1992 se volta à inscrição
obrigatória, se constate que perto de 10 mil engenheiros não eram membros (basta ver o
salto no número de membros de um ano para o outro). Mais do que isso, não houve
qualquer burborinho, nessa altura, pelo facto de a Ordem voltar à órbita do Estado, com o
estatuto de Associação Pública. Julgo que a maioria dos engenheiros, de resto, desconhece
totalmente ser esse o estatuto da Ordem – era, aliás, o meu caso antes de ler este
trabalho.
Na verdade, fica-se com o sentimento, de que o que verdadeiramente mobilizou os
engenheiros ao longo deste século foi sobretudo a defesa do título, do diploma (de que,
aliás, ninguém lhes pede prova), com o que isso tem de simbólico, de oportunidades de
empregos e carreiras e de reconhecimento social – desde aquele que os faz ouvirem-se
várias vezes ao dia tratar por “sr. engº”, pessoa que se suspeita ter algum poder e estar
“bem relacionada”. A dado passo M.L. Rodrigues exprime-o desta maneira : “A forma
como perdura a sua influência [da origem social] na determinação de percursos e carreiras
profissionais (...) revela a existência de mecanismos diversos de fechamento ou de
segmentação que, em paralelo com a extensão e diversificação dos campos de actividade,
garantem que, apesar do aumento do número de membros, a profissão se mantenha como
um espaço de reprodução de elites”.
A terminar. Estranha profissão esta que ganharia consistência na diluição dos saberes e na
diversificação de actividades, e profissionalidade no exercício de tarefas não-profissionais.
Mas lá estou eu a usar a palavra profissional em sentido restrito. Responde-me antecipadamente
a autora : há que “perceber o papel dos diferentes agentes na construção da
profissionalidade do grupo. Em relação aos engenheiros, pode dizer-se que não está
inscrita na natureza do seu trabalho ou da sua actividade, dentro ou fora das organizações,
a impossibilidade da sua profissionalização”. É matéria que terei de deixar para ser
debatida entre sociólogos.

Os engenheiros em Portugal

Análise Social, Vol. 35, No.156 (2000)


Maria de Lurdes Rodrigues – Os engenheiros em Portugal, Profissionalização e protagonismo

– Celta Editora, Oeiras, 1999


Muita gente conhece alguns engenheiros, sem ter muita ideia do que fazem neste mundo “os engenheiros”. Pouco se indagou ou escreveu sobre eles, de resto. Mas nas últimas décadas, historiadores e economistas, ao analisarem as questões do desenvolvimento no período salazarista, depararam-se com eles nos nossos anos 30 e 40, então arautos (uma “vanguarda”, é certo) da electrificação e da industrialização. É agora a vez de a sociologia meter mãos à obra e perscrutar-lhes, enquanto grupo, o percurso de uma “construção da profissionalidade”.


Este excelente trabalho de Maria de Lurdes Rodrigues, ao afastar-se deliberadamente das abordagens funcionalistas, que tendem a não reconhecer aos engenheiros o estatuto de “profissão” (segundo o padrão dos “médicos” ou dos “advogados”), propõe-nos um conceito de “profissão” mais alargado e complexo. Na verdade, os engenheiros são, no essencial, assalariados em organizações, públicas ou privadas, e essa mesma especificidade poderá, segundo a autora, conduzir ao “reconhecimento do papel das organizações

no processo de configuração” da profissão. As metodologias utilizadas são diversas e entendidas como complementares, a elas correspondendo três sucessivas etapas na apresentação do trabalho. Na primeira, acompanhamos os resultados de uma investigação histórica, que nos mostra a evolução da afirmação do “grupo” desde os primórdios da engenharia militar, no século passado, até aos nossos dias. Depois, temos o aprofundado tratamento de um vasto inquérito socioprofissional aos diplomados de engenharia, efectuado em 1994. Por fim, são-nos apresentados os resultados de um inquérito por entrevista a centena e meia de engenheiros “em situação de trabalho” em organizações, nomeadamente três grandes empresas privadas.


Está fora do âmbito deste texto determo-nos nas múltiplas pistas sugeridas pela valiosíssima informação produzida. Refiramos apenas, no plano histórico, as sucessivas batalhas para a conquista de um espaço e de um título próprios: primeiro, engenheiros civis vs militares, até á primeira década do século; depois a interminável querela, que vem até aos nossos dias, que opõe, enquanto verdadeira “questão social”, engenheiros e (hoje) engenheiros técnicos (estes mudando periodicamente de nome, muito ao sabor de

conjunturas políticas, mas acirrando-se quase sempre mais os ânimos de cada vez que nesse nome apareciam a palavras “engenheiro” ou “engenharia”); enfim a disputa particular entre engenheiros civis e arquitectos, essa também não totalmente encerrada. Neste longo percurso saliente-se, aliás, o momento fundador da “engenharia moderna” portuguesa que foi, em 1911, a criação do Instituto Superior Técnico e da Faculdade de Engenharia do Porto.


Quanto ao perfil socioprofissional na actualidade, mencione-se, no caso do inquérito alargado, o tratamento de aspectos como a estrutura da “profissão” por especialidades, escolas de origem dos diplomas, escalão etário, sexo, áreas de actividade principal, estatuto jurídico e dimensão da entidade empregadora, situação hierárquica e índices de receitas; a abordagem da questão da origem social, em que fica clara a diferenciação entre engenheiros e engenheiros técnicos, seguida de uma análise factorial de correspondências múltiplas que permite identificar as principais variáveis discriminantes, como sejam “a oposição entre o mundo das empresas e o mundo do ensino e da função pública” e a que decorre do grau/diploma, e determinar grupos de categorias de variáveis definidores de quatro “espaços” bem diferenciados de origem/ocupação dos diplomados em engenharia; enfim as questões relativas à mobilidade e carreiras profissionais, onde se conclui, já sem demasiada surpresa, que à ascensão na carreira corresponde o afastamento de funções técnicas : “a passagem de funções técnicas a funções de chefia resume o essencial das carreiras dos engenheiros, nela se define o sucesso ou insucesso do percurso profissional” – mas haveria ainda que ver que componente técnica têm ou não ainda essas funções de chefia (um Director de produção, ou um Administrador de uma empresa de projectos de engenharia, são exemplos de que se pode chegar a topos de chefia sem sair em definitivo da área técnica).


Enfim, no inquérito por entrevista a diplomados em engenharia em três empresas de grande dimensão (a menor tem 150 diplomados, a maior 1020, casos raros no panorama português), retomam-se os problemas de carreiras e mobilidade, mas complementados por outras áreas de análise, como as de autonomia e participação, de modalidades de divisão do trabalho e de natureza do saber posto em jogo no exercício das actividades profissionais.


Apresentado, pois, o trabalho, em linhas muito gerais. Sucede que, quando, como o autor destas linhas, se faz parte do universo observado, apetece reflectir um pouco sobre algumas questões.


Em primeiro lugar, justamente a questão dos saberes. Ela atravessa, aliás, todo o trabalho de M. de Lurdes Rodrigues, e constitui mesmo uma das permanentes interrogações da investigadora : em que medida a actividade desenvolvida pelos engenheiros se aproxima ou afasta “dos nichos de produção/aplicação do conhecimento técnico-científico”, ou, por outras palavras, em que medida a ciência e a tecnologia estão ou mais ou menos presentes no exercício das funções desempenhadas pelos engenheiros. Na verdade, na já longa guerrilha com os engenheiros técnicos, desde quando estes ainda se chamavam “condutores”, o argumento sempre invocado pelos engenheiros (e também pelos estudantes por altura da greve de 1925-26) foi o da superioridade científica dos seus conhecimentos, em particular o seu domínio das matemáticas. Quem os não tivesse obviamente não poderia assumir nas instituições públicas ou privadas posições cuja responsabilidade técnica os exigia – argumento repetido por sucessivas gerações. Não surpreenderá, assim, alguma perplexidade da própria investigadora quando, através do seu inquérito, constata, por parte da maioria dos inquiridos “a reificação da experiência e das competências adquiridas nas situações de trabalho a alta valorização atribuída à experiência profissional, acompanhada da denúncia da excessiva formação teórica e da insuficiente formação prática no ensino da engenharia em Portugal”. E mais : “são cerca de 80% os engenheiros licenciados a considerar que os seus conhecimentos técnicos são sub-utilizados e que parte das suas tarefas poderiam ser desenvolvidas por alguém menos qualificado”. Arrisco pensar que a isto não será alheio o facto de a economia portuguesa se ter mantido tão tecnologicamente dependente do exterior que raramente pôde (com excepção da engenharia civil, v. ponto seguinte), oferecer aos engenheiros muito mais, no plano técnico, do que tarefas de execução/especificação/controle/pla- neamento, ainda que qualificadas, em detrimento das de concepção/cálculo/projecto de alguma complexidade.


Se tivermos ainda em conta que, desde sempre, o número de engenheiros se manteve muito superior ao de engenheiros técnicos, absurda inversão (numa perspectiva de mercado) bem salientada no estudo, então será compreensível que uma boa parte dos engenheiros exerçam actividades que normalmente poderiam ser ocupadas por engenheiros técnicos, buscando aqueles a diferenciação em tarefas não-técnicas qualificadas que lhes poderão dar acesso aos níveis mais altos da hierarquia. Compreensível também que os engenheiros técnicos sempre se tenham reclamado igualmente competentes para o desempenho das tarefas técnicas que predominam no mercado.


O perfil de carreiras traçado neste trabalho confirma-o : a ascensão dos engenheiros na hierarquia das organizações faz-se no sentido da administração/gestão e não no sentido de tarefas técnico-científicas de maior complexidade. E mesmo hoje, quando as actividades de ID já têm alguma expressão, as carreiras técnico-científicas permanecem muito confinadas aos percursos intra-universitários, com escassa ligação ao mundo das empresas. M.L.Rodrigues conclui a dado passo : “Vimos como os saberes mobilizados, tal como os papéis desempenhados pelos diplomados de engenharia nas organizações, não são exclusivamente técnicos – as dimensões relacionais presentes nas suas competências, as suas expectativas de poder, autonomia e participação fazem deles homens de confiança das organizações e das entidades empregadoras”. Por isso mesmo, os próprios entrevistados, quando confrontados com a sua própria prática, invocam muitas vezes como razões para a imprescindibilidade do diploma as “de ordem social ou simbólica, como o estatuto ou as expectativas dos clientes, a ordem de valores dos negócios em jogo, a credibilidade, etc.”


Estas considerações prendem-se com o meu segundo tema, esse não abordado neste trabalho : a questão das especialidades. Embora se indiquem as estruturas do “grupo” por especialidades nos vários períodos estudados, a variável “especialidade” não foi introduzida nas análises estatísticas efectuadas, nem no tratamento do inquérito directo. Ora se há coisa que “separa” os engenheiros, desde a escola até ao mercado de trabalho, é justamente a especialidade, criando sub-identificações próprias e, julgo que em boa medida (mas haveria que confirmá-lo), influindo nas próprias carreiras. Basta ter-se em conta que, de entre as especialidades “clássicas” (as cinco que se mantiveram desde 1911 até meados dos anos 80), apenas uma – a engenharia civil – pôde, desde há muito, oferecer perspectivas de uma carreira profissional completa. Quer-se dizer com isto que um engenheiro civil pode aspirar a exercer, ao longo da sua carreira, funções de concepção, projecto e obra, sem sair da área especificamente técnica. Uma larga maioria das grandes obras de engenharia civil deste século (e sobretudo da segunda metade), como barragens, pontes (de betão), estradas e portos ou grandes obras de saneamento foram projectadas de raiz por engenheiros portugueses, sem falar, é claro, no mundo interminável dos edifícios (e, de passagem, é a este último domínio que praticamente se confina a disputa engenheiros vs arquitectos). É também na área da engenharia civil que se desenvolve, desde os anos 40, um assinalável esforço de investigação, com a criação no LNEC de uma “escola portuguesa” de engenharia hidráulica, que adquiriu projecção internacional : até mesmo a carreira de investigação se abriu então aos engenheiros civis. É claro que tudo isto teve que ver, uma vez mais, com o lento processo de desenvolvimento industrial do país : até aos anos 40, praticamente, o mercado para os engenheiros era, no essencial, o da construção civil e obras públicas (incluindo os lugares de função pública a elas associados) e ainda hoje é esta a especialidade que conta com maior número de engenheiros. Não é por acaso que os nomes grandes da engenharia portuguesa – os Manuel Rocha, Laginha Serafim, Edgar Cardoso, e tantos outros – são praticamente todos engenheiros civis.


No polo oposto, temos os engenheiros químico-industriais, vocacionados, em teoria, para as chamadas “indústrias de processo". Neste caso, dada a quase total ausência de autonomia tecnológica nesse tipo de actividade em Portugal, nunca foi possível aspirarem a tarefas de concepção e de projecto, tendo-se limitado a ser bons operadores de fábricas projectadas e fornecidas pelos licenciadores estrangeiros (ou funcionários públicos, ou professores, ou consultores). Os mecânicos e os electrotécnicos estão numa situação intermédia, com domínio do projecto em algumas áreas significativas, mas a ambos primeiros falta em boa parte a experiência (vital nos países industrializados) do projecto de máquinas industriais, que na sua maioria são importadas. O surto mais recente da especialidade “electrónica e engenharia de sistemas” abre hoje novas perspectivas à Segunda dessas especialidades. Quanto aos mineiros, a sua expressão é diminuta, como o é hoje a própria actividade mineira (excluindo as pedreiras) em Portugal.


Em termos de mercado de emprego, também esta diferenciação poderá ser importante. Enquanto os engenheiros civis têm, se assim se pode dizer, um sector industrial “por sua conta” – a indústria da construção, complementada pelos gabinetes de projecto e pelos serviços públicos de lançamento e controle de obras -, onde podem “experimentar” todas as fases de uma carreira técnica, onde podem transitar da obra para o projecto, ou da execução para a fiscalização, do pequeno para o grande empreiteiro, etc, sempre em contacto com outros engenheiros civis, com as restantes especialidades não sucederá o mesmo. Afigura-se-me que, nestas últimas, o mercado de emprego é sectorialmente muito mais diversificado, o engenheiro trabalha geralmente muito mais isolado. Único engenheiro em muitas empresas (das que têm engenheiros), é chamado com frequência a resolver problemas, técnicos ou outros, que não são da sua especialidade, mas em contrapartida é frequente entrar logo para funções de chefia ou sub-chefia, e pode eventualmente aspirar a uma carreira ascensional relativamente rápida (na mesma ou noutra empresa). Suspeito também que os engenheiros não-civis terão, proporcionalmente, uma presença muito menor que os civis no sector público não empresarial.


A ser assim, e haveria que demonstrá-lo, esta diferente relação com os saberes adquiridos na escola e com os mercados de emprego poderiam configurar percursos profissionais também eles significativamente distintos. Dito isto, cabe-me observar que uma boa tese tem sempre esta imensa virtude : abrir para novas investigações justamente suscitadas pelos aspectos que a ela não coube desenvolver. E, já agora, se neste trabalho, compreensivel e deliberadamente, se excluíram da análise as relações entre o percurso dos engenheiros e o processo de desenvolvimento económico (e especificamente industrial) do país, pois tal não era o seu objectivo, vejo aí também matéria de muito interesse para trabalhos futuros.


Finalmente, algumas breves palavras sobre o associativismo dos engenheiros. Na verdade, se o grau de empenho associativo pode de algum modo ser um indicador de um “sentido de profissão”, ou mesmo de “comunidade profissional”, julgo que a informação produzida é de molde a não ter muitas ilusões. A primitiva AECP (Associação dos Engenheiros Civis Portugueses) não tem, em 1911, qualquer intervenção no momento fundamental para a profissão que foi a criação das grandes escolas de engenharia, tendo mantido a esse respeito um silêncio “entre o expectante e o desconfiado”; em 1916 queixa-se da “pouca afluência dos sócios”; em 1925-26, quem vai fazer greve contra a designação de “engenheiros auxiliares” dada aos diplomados em escolas não-universitárias são os estudantes do IST; enfim, em 1936 aceita sem grande alarido a sua suspensão (na prática, o encerramento) em benefício da nova Ordem dos Engenheiros, organismo de inscrição obrigatória inserido no dispositivo corporativo. Quanto a esta, não surpreenderá o pouco interesse que por ela manifestaram os engenheiros, mas já se afigura mais estranho que em plena democracia, quando em 1992 se volta à inscrição obrigatória, se constate que perto de 10 mil engenheiros não eram membros (basta ver o salto no número de membros de um ano para o outro). Mais do que isso, não houve qualquer burborinho, nessa altura, pelo facto de a Ordem voltar à órbita do Estado, com o estatuto de Associação Pública. Julgo que a maioria dos engenheiros, de resto, desconhece totalmente ser esse o estatuto da Ordem – era, aliás, o meu caso antes de ler este trabalho.

Na verdade, fica-se com o sentimento, de que o que verdadeiramente mobilizou os engenheiros ao longo deste século foi sobretudo a defesa do título, do diploma (de que, aliás, ninguém lhes pede prova), com o que isso tem de simbólico, de oportunidades de empregos e carreiras e de reconhecimento social – desde aquele que os faz ouvirem-se várias vezes ao dia tratar por “sr. engº”, pessoa que se suspeita ter algum poder e estar “bem relacionada”. A dado passo M.L. Rodrigues exprime-o desta maneira : “A forma como perdura a sua influência [da origem social] na determinação de percursos e carreiras profissionais (...) revela a existência de mecanismos diversos de fechamento ou de segmentação que, em paralelo com a extensão e diversificação dos campos de actividade, garantem que, apesar do aumento do número de membros, a profissão se mantenha como um espaço de reprodução de elites”.


A terminar. Estranha profissão esta que ganharia consistência na diluição dos saberes e na diversificação de actividades, e profissionalidade no exercício de tarefas não-profissionais. Mas lá estou eu a usar a palavra profissional em sentido restrito. Responde-me antecipadamente a autora : há que “perceber o papel dos diferentes agentes na construção da profissionalidade do grupo. Em relação aos engenheiros, pode dizer-se que não está inscrita na natureza do seu trabalho ou da sua actividade, dentro ou fora das organizações, a impossibilidade da sua profissionalização”. É matéria que terei de deixar para ser debatida entre sociólogos.