Carta aberta a João Cravinho

Público, 7 Maio 1999

 

Meu caro João,

 

Desde os tempos do 40 900 até hoje, estivemos várias vezes no mesmo barco, ou em barcos próximos. Mas mesmo quando o teu barco se afastou para águas socialistas, já lá vão uns 20 anos, nem por isso deixámos estiolar a nossa velha amizade e com mais ou menos frequência nos fomos encontrando e sempre comentando apimentadamente a política do tempo.

 

No momento presente, pareceu-me que seria insuficiente, para mim, mais um desses encontros, em que, entre duas garfadas de cozido, debatêssemos o que vai por cá, e pelo mundo. É que o que vai pelo mundo, mais propriamente por esta Europa que se dá a ver como berço e estandarte da “civilização ocidental”, é grave demais para ficar balizado por uma bela hora de conversa bem-humorada, finda a qual cada um vai à sua vida. Tu, em particular, à tua de ministro de um governo em guerra.

 

Na verdade, por mais voltas que lhe dê e por mais que pondere as diferenças de contexto, os bombardeamentos da Sérvia não podem deixar de me lembrar o crime gratuito de Dresde em 45, e os dos Estados Unidos no Vietname, isto para só lembrar casos protagonizados pelos aliados de hoje. Todos têm em comum a arrogância dos Estados-Maiores militares quando em situação de esmagadora superioridade de meios e o desprezo absoluto pelas populações civis que, supostamente, se pretende “libertar” e reconduzir à “convivência democrática”.  Como se, antes de serem “salvas”, essas populações tivessem de ser castigadas. Em suma, têm em comum o facto de serem bárbaras, o que é justamente o oposto de “civilizado”, na acepção mais corrente.

 

Ponho-me a imaginar o que pensaríamos nós, ao tempo de Salazar, se uma qualquer grande potência do momento, a pretexto dos métodos insuportáveis de tal ditadura, aqui e nas colónias, decidisse arrasar o país, como prelúdio para a “instauração da democracia”. Vejo-me, vejo-nos a todos nós, a unirmo-nos decididamente contra o abominável agressor. Mas não. Nesse tempo a potência dominante, a mesma de hoje, andava entretida muito simplesmente a sustentar ditadores ao pé dos quais o Salazar era um aprendiz : Franco (que teria no seu “activo” bem mais vítimas do que Milosevic), Somoza, Batista, Trujillo, Perez Jimenez e tantos outros. Isto antes de colocar no poder Pinochet, e enquanto os seus aliados europeus faziam o mesmo em África com os Bokassa, Mobuto ou Hassan ( o amigo do Dr. Soares).

 

Por isso mesmo, não me venhas falar em direitos humanos ou em protecção de populações (minoritárias ou não). Duvido que os albaneses do Kosovo  estejam agradecidos

 

 à NATO pela “protecção” que, alegadamente, teria estado na origem das operações. Uma coisa é certa : pelo menos adquiriram o direito a “refugiar-se”, nas terríveis condições que se conhecem. E adquiriram outro, esse em comum com os sérvios : nunca mais se irão ver livres dos seus intitulados protectores. Porque, acabada a violência e a destruição (e hão-de acabar, talvez em breve, evitando, se assim for,  os sérios riscos de alargamento do conflito), os “senhores da guerra” virão generosamente presidir à reconstrução, pois se até já se fala dos famigerados protectorados !. Aos negócios da guerra - pense-se só nas indústrias (e na investigação) de armamentos e munições - sucederão os negócios “da paz” : novas pontes, novas centrais, novas estradas, novos aeroportos, novos edifícios, novas televisões. Os aliados de hoje precipitar-se-ão com meios financeiros e materiais, com engenheiros, arquitectos, economistas, peritos, consultores, assessores. Os Balkãs tornar-se-ão num imenso estaleiro, mas os homens que lá viviam não serão mais os mesmos e, ainda que regressem, mal se reconhecerão no novo “território” que lhes será outorgado. Perder a vida não é só tornar-se cadáver : é perder a dignidade, perder o habitat, quando não perder a família, porventura dispersa por países ignorados.

 

Ainda há algo mais. A guerra é sempre detestável. Mas a guerra dita “limpa”, em que à partida o agressor se dá ao luxo de não ter vítimas, de nem sequer ser forçado a olhar de frente aqueles que vai matar ou destruir, isto é, a guerra dispensada de sofrimento próprio, a guerra-passeio de quem está seguro de ganhar em pouco tempo, a guerra-teste de armamentos, essa guerra  tem algo de obsceno. Só terá um pequeno inconveniente : também se dispensam os heróis. Isso será apenas, para os militares, inebriados com as suas altas tecnologias,  um “dano colateral”.

 

A Europa, nisto tudo, fez um pouco a figura das claques futebolísticas, que gritam quanto podem, mas não jogam. Blair e Chirac têm sido os grandes chefes de claque e, diga-se, também muito contribuíram para “pôr a bola em jogo”. Mas, a partir daí, ficaram nas mãos da Sra. Albright e dos Estados-Maiores da NATO, que, bem vistas as coisas, bem precisavam de uma coisa destas para redefinirem o seu papel no pós-Guerra Fria. Depois disto, a Europa também não será a mesma, se é que ainda será alguma coisa.

 

Para que não restem dúvidas : os perdedores nesta tragédia serão obviamente os kosovares, que não têm culpa que o “Ocidente” tenha apostado no UÇK para a sua “libertação”, e os sérvios, que não souberam, ou quiseram, ou puderam livrar-se do Milosevic, pelos meios apropriados, enquanto era tempo.

 

Meu caro João, (também) eu “tive um sonho” : que uma eventual saída tua do governo (de que falam alguns jornais) se não devesse a uma suposta escassez de obras públicas

em período pré-eleitoral, ou a uma promoção à Comissão de Bruxelas, mas a um vigoroso murro na mesa em protesto contra esta guerra inacreditável !

 

Embora não possamos esquecer o precedente trágico da engrenagem aparentemente imparável que levou à Grande Guerra (“pourquoi ont-ils tué Jaurès ?”), nenhuma guerra é inevitável. Disso falaremos talvez um dia, a uma qualquer sobremesa.

 

 

 

5.5.99                                                                     João Martins Pereira