ESPANHA
AS
LÁGRIMAS QUE NOS PROMETEM
República, 30 de Setembro de 1975
O eco dos disparos que fizeram cair cinco revolucionários
espanhóis atinge-nos, deste lado da fronteira, com ressonâncias que a outros
passarão despercebidas. É que o fascismo que apontou essas armas, a violência
que é diariamente – e não apenas quando chega a tais extremos – o fascismo, é
algo que bem conhecemos, quantos de nós desde que nasceram.
Melhor que ninguém estamos colocados para apreciar a
imensa hipocrisia que representa a “revolta moral” que por essa Europa vai
nestes dias: Franco despedaça momentaneamente os corações de tantos que o têm
ajudado a sobreviver, de tantos sem os quais há muito teria deixado de cometer
tais crimes. Rir-nos-íamos, se não fosse nojento, da firmeza com que a Alemanha
Federal chama rapidamente o seu embaixador em Madrid, ainda há bem poucos meses o seu ministro dos negócios
estrangeiros – um tal Genscher, cujo nome é bom fixar, parece que amigo pessoal
do dr. Mário Soares – passou uns excelentes dias precisamente em Madrid a
congeminar a eventual substituição de um Portugal “socializante” por uma
Espanha segura e bem fascista na NATO! Convém ter presente, hoje mais do que
nunca, que se a Espanha franquista sobreviveu após 1945 foi porque os Estados
Unidos, empenhados na guerra fria, lhe deram uma mão forte (a troco da
instalação de bases militares e nucleares) e, depois deles, a mesma Europa que
reserva os seus esporádicos sobressaltos para os momentos em que Franco,
impassível, decide abater Grimau, e mais tarde Puig Antich, e hoje mais estes
cinco revolucionários. Os próprios países ditos socialistas, pragmáticos e
respeitadores dos acordos de partilhas entre blocos, acabaram por normalizar as
suas relações com Franco e têm vindo, ano a ano, a desenvolver trocas e a
firmar acordos (e é bom que se saiba, que se do mesmo escapámos ao tempo de Marcelo terá sido em boa parte
por pressão dos movimentos de libertação das colónias).
Mas a Europa esquece aqueles sobressaltos em poucas horas.
E ao mesmo tempo que deita umas lágrimas passageiras nestas ocasiões, vai
preparando para Portugal (que cometeu o gravíssimo crime de esmagar o fascismo)
dias talvez bem mais sangrentos. Os governos europeus empenharam-se
decididamente em impor a Portugal o regime político que melhor lhes convenha (e,
sobretudo, aos Estados Unidos), nem que volte a ser um regime fascista: ainda
tem lágrimas de reserva para verter pelos crimes que tal regime, em nome da
“pax americana”, venha a cometer. Pois não é certo que, com ou sem execuções,
os investidores e negociantes estrangeiros, as multinacionais e quejandos, se
sentem bem mais seguros na Espanha fascista (por quanto tempo ainda?) do que no
Portugal pós-25 de Abril? Será a Espanha que as ITT e as General Motors ameaçam
abandonar? Serão os movimentos antifascistas espanhóis ou é Spínola quem tem
apoio e acesso directo aos mais altos funcionários da Presidência da República
Francesa? É sobre a Espanha que Ford e Kissinger têm ultimamente multiplicado
as declarações de “inquietação” e os propósitos mal-disfarçados de intervenção?
É com o fascismo espanhol que se preocupa o Mercado Comum (alguns membros tanto
têm pugnado pela entrada de Espanha!) ou, pelo contrário, uma simples ameaça da
direita em Portugal é logo saudada por Bruxelas com um “sinal positivo”?
O sistema capitalista tem leis inelutáveis, que mesmo as
mais generosas almas de empresários se têm de submeter. Essas leis impelem-nos
para aqueles países onde os lucros se afiguram mais prometedores e os seus bens
mais protegidos: onde a “ordem social” lhes permita a mais tranquila exploração
do “bom povo” que os acolhe. Tudo isto nos é familiar. Já nos era antes e, mais
do que nunca, o é desde o 25 de Abril.
Mas hoje há outra coisa que nos é bem clara, e essa
evidência devemo-la aos cinco patriotas espanhóis assassinados: um governo que,
a propósito de tal crime, emite um comunicado como aquele que ontem concebeu o
VI Governo Provisório é um governo pronto
a vender Portugal por um prato de lentilhas.
A Europa tem-nos, pois, lágrimas abundantes prometidas para
quando tiver conseguido que Portugal volte à “ordem fascista”. Lágrimas e
dólares por certo. Durante tempo demais
evitámos à Europa as lágrimas que já devia ter chorado pela vitória da
revolução em Portugal. Oxalá ainda tenhamos forças para, juntamente com os
revolucionários espanhóis, a fazer chorar essas, que não estão no seu programa.