CONVERSA COM VISTA PARA…
Entrevista de Maria João Seixas
Público, 1 de Abril 2001
Foi, numa brevíssima passagem pelo poder executivo, Secretário de Estado da Indústria do IV Governo Provisório. O Ministro, que para tal aventura o convenceu, era João Cravinho, seu amigo. Na época dizia-se da equipa: há o João que ri (Cravinho) e o João que chora (Martins Pereira). Trata-se então de um acabrunhado, alguém a quem as dores do mundo parecem pesar, sem remissão, sobre os seus ombros? Nada disso! Tem um sentido de humor muito lisboeta, quase ladino, consegue gostar de petiscos sem gostar de vinho ( um estranho pecado original!), procura o sol como um gato e atira-se ao mar como um peixe, pode passar horas a saborear uma conversa, perde-se por um pézinho de dança e era vê-lo ligeiro como um bailarino, a voltear por boleros e rumbas. Só que este lado da vida, este modo como a habita, não o mistura nem o pratica no mundo do trabalho. É intra-muros que a amizade, com os seus ritos de prazer e descompressão, deve ser vivida. Extra-muros fica o outro lado, o da actividade profissional, que nunca lhe deixou grande folga para o “divertimento”. Surpreendeu-o o meu convite e hesitou em aceitar. “Porquê eu, que não faço parte do mundo dos “conhecidos”? Que estou cada vez mais carregado de dúvidas?” Sabes, João, interessam-me mais as tuas dúvidas do que muitas das certezas que por aí vou lendo. Interessa-me mais percorrer, numa conversa a dois, a coerência dos teus passos e do teu modo de estar no mundo, do que muitas das lantejoulas e das piruetas que os “conhecidos” por aí vão ostentando. O teu envolvimento empenhado nas questões políticas ajudou-me a perceber melhor o que alimenta as diferentes ideologias, levou-me a interessar-me pelos modos de produção e a não me distrair da natureza essencialmente cúpida do capital. Aprendi contigo que se pode ser firme, sem se ser dogmático. Que estarmos atentos ao que se passa à nossa volta e procurarmos, sem concessões, entender as causas das coisas, é a raiz justa da ética. Que as “decisões” da vida de cada um, só cada um as pode tomar e ser delas responsável. Se muito disto me ensinaste, deverás aceitar, melhor do que ninguém, que não faria sentido deixar passar em branco uma “Conversa com Vista para…” ti.
MJS – João, diz-me quem és.
JMP – As pessoas vão sendo. A única maneira de responder à tua questão é dar-te uma ideia do que é que eu fui sendo. Família pequeno-burguesa, sem muitos meios, com algumas dificuldades e com pouco contributo para a minha formação. O meu pai andava embarcado, um pai ausente. Tive sempre que ir descobrindo aquilo que pudesse descobrir. Não tinha livros em casa… era tudo pouco estimulante. Mas lá fui estudando, lá fui parar ao Técnico, nem sei bem porquê, nem para quê. No Técnico, para além de me interessar pelas matemáticas e mesmo pelas engenharias, descobri algumas coisas, descobri que não chegava estudar. Fiz o meu primeiro círculo de amigos, conheci gente de várias tendências, comunistas, por exemplo, nem sabia muito bem o que é que significava ser-se comunista! Trabalhei na Associação de Estudantes, onde aflorei pela primeira vez a política, porque calhou ser um período de conflito com o Governo, por causa do célebre decreto 40.900, que se destinava a apertar o controle sobre as associações de estudantes, com uma nova regulamentação dos estatutos.
MJS – Falas-me de que anos?
JMP – Estávamos em 1955/56. A seguir ao Técnico, a tropa. Eu, que sempre fui o mais avesso possível à instituição militar, antes e sobretudo depois de lá ter estado, tenho que reconhecer que foi na tropa que pela primeira vez vi e tive contacto com o “povo”, com gente do povo. Vindos ali das aldeias vizinhas. Alguns jogadores de futebol pelo meio…
MJS – Fizeste a tropa onde?
JMP – Em Alcabideche. Feita a recruta, como já era engenheiro, fui oficial miliciano, na unidade de artilharia de costa. Estava portanto incumbido e supostamente preparado para impedir que uma esquadra inimiga entrasse no Tejo! A seguir, passei logo à vida activa. Já com uma família a meu cargo. O meu pai tinha-se separado, há pouco tempo, da minha mãe. Uma breve passagem pela CUF e, depois, entro para a Siderurgia para me integrar num grupo de estagiários que iriam passar dois anos à Alemanha, e no meu caso também à Áustria. Na Alemanha, foram mil descobertas: logo em primeiro lugar - a indústria, pela qual fiquei apaixonado, é um mundo fascinante sob todos os aspectos. Em seguida, através dos colegas que lá encontrei, mais lidos do que eu, é na Alemanha, em plena guerra da Argélia, que descubro na livraria francesa de Duesseldorf o “Express”, o “France Observateur” (hoje “Nouvel Observateur”), os “Temps Modernes”.
MJS – Estávamos em finais dos anos 50?
JMP – Sim, estive na Alemanha de 58 a 60. Pela primeira vez tive uma noção do que era esquerda e direita, à custa da guerra da Argélia. Percebi o que era ser de esquerda, em particular naquele caso. Através de gente, como era o caso do Mauriac e da sua coluna semanal no “Express”, que vinha de outras paragens! Isso para mim foi muito importante, além de me manter em contacto com aquele mundo fabril, que é um extraordinário mundo de aprendizagem da vida humana.
MJS – Não tinhas dificuldades de comunicação por causa da língua alemã?
JMP – Tivemos uma aprendizagem muito escassa, antes de irmos. Depois, foi no terreno que aprendemos. Estávamos lá para fazer perguntas e para perceber as respostas. Ao fim de seis meses já falava correntemente. Volto para Portugal, para a Siderurgia e sou logo nomeado chefe de um serviço de uma fábrica da Siderurgia Nacional. E aí começam-se-me a pôr problemas: com vinte e poucos anos tinha 200 homens sob a minha chefia, 200 homens que, na sua maior parte, vinham dos empreiteiros que tinham lá estado a fazer a construção. Gente com muito pouca formação e que, de repente, se vê a ter que conduzir uma ponte rolante com uma panela de aço que pesava 30 toneladas líquidas. Um tipo começa a sentir-se mal, a sentir uma responsabilidade imensa, e se há um acidente?, além de ver quem era aquela gente, que ganhava pouquíssimo, com privações terríveis… Comecei a pensar qual era o meu papel no meio daquilo tudo. Tinha que perceber melhor outras coisas, coisas que a fábrica só por si não me dava. De alguma maneira eu já tinha tenções de deixar a Siderurgia, quando acabasse o meu contrato. E saio, em Agosto de 62. A minha vontade era ir aprender coisas que me servissem para perceber aquilo tudo, para perceber qual era o meu papel. Deparou-se-me uma hipótese muito interessante, a de ir para a Venezuela, durante um ano, dirigir uma fábrica de vidro, de um português. Mais uma vez – fornos! Pelos meus cálculos, que provaram estar certos, isso dava-me para, ao fim de um ano, poder ir estudar para Paris. A Venezuela é, como sabes, um país da América do Sul… com petróleo! A presença americana naquele país, no meio daquela imensa miséria, era, e suspeito que continua a ser, uma coisa tremenda. Aprendi na Venezuela mais uma coisa: o papel dos Estados Unidos nos países sul-americanos! O petróleo enriqueceu muita gente, mas destruiu a Venezuela. Quer durante a ditadura, que tinha acabado pouco antes de eu chegar e que fôra muito apoiada pelos Estados Unidos, quer com a democracia. Ao fim de um ano, como tinha matematicamente previsto antes de ir, embora o meu patrão não soubesse, parti para Paris. O que lá tinha ganho deu-me efectivamente para isso.
MJS – Mesmo tendo que continuar a suportar os encargos com a família em Lisboa?
JMP – Sim, sim. E, apesar da vida austera que fiz em Paris, ainda consegui comprar um Renault Dauphine!
MJS – Já estamos em 64?
JMP – 63/64. Cheguei a Paris no ano em que morreu o Kennedy e em que foi dado o Nobel ao Sartre, que ele recusou, como sabes.
MJS – Foste para Paris estudar. Exactamente o quê?
JMP – Sociologia e Economia do Trabalho. Com professores magníficos, Alain Touraine, Michel Rocard, um outro, muito pouco conhecido hoje, o imponente André Philippe, velho resistente, um colossal contador de “História”, fiquei a saber imenso sobre história do sindicalismo, sobre economia dos países sub-desenvolvidos… Foi, de facto, um ano de grande formação.
MJS – Na Sorbonne?
JMP – Não, no Instituto de Ciências Sociais do Trabalho, que pertencia à Faculdade de Direito e Ciências Económicas.
MJS – E depois? O que é que pensaste fazer com toda essa nova formação?
JMP – A minha ideia, que já vinha de trás, era de alguma maneira conseguir deixar de ser engenheiro. A meu ver, o papel de um engenheiro, e de um engenheiro com a minha formação, era numa fábrica. Seria sempre um chefe e isso eu suportava mal. Regressei a Portugal em 64 e, em Portugal, não havia obviamente emprego para gente formada em Sociologia do Trabalho. Acabo por ir parar à Pro-Fabril, empresa recém constituída, que era um centro de projectos, quase exclusivamente formado por engenheiros e desenhadores.. Em termos profissionais, foi o grupo onde fiquei até me reformar, há dois anos. E o que é que fazia? Fazia estudos relacionados com a indústria. Muitos cá, mas também alguns relacionados com as antigas colónias. Viajei muito. Conheci Angola, Moçambique, o Brasil, uma grande parte da Europa. O trabalho interessou-me, era um trabalho de pequena investigação, que me ensinou imenso sobre a indústria.
MJS – E a vida para além do trabalho, não me falas dela?
JMP - A um dado momento… descubro a paixão. E, como é próprio das paixões, abri-me para a vida. Descubro o VáVá e a sua famosa tertúlia, corria o ano de 66. Muitos dos amigos que tenho hoje foi lá que os conheci. Foi lá que conheci as pessoas do cinema, da literatura, das artes.
MJS – Foi como uma nova escola?
JMP – Foi. E então aí começo uma segunda fase. Quis escrever. Começo a escrever na “Seara Nova”. Não é por acaso que o meu primeiro artigo é sobre “relações humanas na empresa”. Fico na “Seara” dois ou três anos e depois passo para o “Tempo e o Modo”. Foi um período muito interessante ( antes daquilo ser dominado pelo MRPP), com um grupo de cerca de trinta pessoas que reuniam até às tantas da madrugada a discutir política, a discutir tudo.
MJS – Já não era o “Tempo e o Modo” do grupo dos católicos progressistas, dos fundadores?
JMP – Não, já não era esse tempo. De resto, tive sempre alguma aversão aos católicos, apesar de, mais tarde, me ter relacionado com alguns dos tais católicos progressistas.
MJS – Não tiveste uma educação católica?
JMP – Não se pode dizer que tenha tido. A minha mãe levava-nos à missa até aos 13/14 anos e víamos, da varanda da nossa casa da Av. 5 de Outubro, a procissão de Nossa Senhora de Fátima, a 13 de Maio. Por junto, foi isso.
MJS – És agnóstico ou ateu?
JMP – Sou ateu.
MJS – Repeguemos no teu desejo de escrever. Para além dos artigos que começaste, com regularidade, a publicar, surge a um dado momento um primeiro livro -“Pensar Portugal Hoje”. Como é que aconteceu esse salto?
JMP – O livro é gerado no “Tempo e o Modo”. Foi editado pela D. Quixote e saiu em Janeiro de 71. A situação já estava de tal maneira alterada no “Tempo e o Modo” , que cheguei a ter, internamente, um julgamento político. Fui acusado de tudo e mais alguma coisa, por gente muito respeitável que por aí anda.
MJS – Qual era a tua intenção de tese no “Pensar Portugal Hoje”?
JMP – Era, no essencial, demonstrar que o grande capital português estava interessado em modernizar-se, eventualmente até em liberalizar-se. Eu chamava a isso uma antecipação super-estrutural. Esse era o grande interesse do capital em Portugal e não que o país se mantivesse na sua dimensão rural. Não te esqueças que estamos já no Marcelismo. Havia no sector industrial português uma certa vontade de modernidade, acompanhada do sentimento da necessidade de abertura ao mundo. Se possível, sem perder as colónias. O início da década de 70 é, de facto, marcado por um razoável crescimento económico.
MJS – E dessa tua leitura sobre o grande capital português poder-se-ia deduzir que o apontavas como capaz de uma contribuição para o fim do regime?
JMP – Não. Não apontava nessa direcção. Tive que escrever com algum cuidado e nem pude ser muito explícito, na medida em que os interesses coloniais e ligados à guerra colonial constituíam um obstáculo brutal a que essa modernização se desse.
MJS – O livro foi censurado?
JMP – Não, não foi censurado. Quem ler agora o livro é natural que estranhe que o problema colonial, que era o problema que conduzia a vida do país, não esteja mais vincado. Se o fizesse, se calhar o livro não sairia. Não sei. Curiosamente a guerra colonial também trouxe alguma modernização ao país, trouxe pleno emprego, juntamente com a emigração.
MJS – Analisaste assim uma época histórica interessante, contraditória…
JMP – Há um ponto capital – na década de 60, Portugal começa a exportar. De repente surgem não sei quantas fábricas de concentrado de tomate, há a Lisnave, a celulose, a indústria têxtil, começa a sério a indústria de confecção... Tudo isto muito ligado à nossa adesão à EFTA. Esse facto é determinante para a modernização da indústria portuguesa.
MJS – O livro vendeu-se bem?
JMP – Os primeiros 3.000 exemplares esgotaram num mês. Foi reeditado no mês seguinte. Também esgotou. Mas nem por isso se escreveu muito sobre ele. Nunca percebi como é que, com tão poucas referências, aqueles milhares de pessoas souberam da existência do livro e o compraram.
MJS – Continuaste a escrever como modo preferencial de “intervenção”?
JMP – A partir daí aconteceu-me escrever um livro praticamente de três em três anos. O segundo – “ Indústria, Ideologia e Quotidiano”, sai pouco depois do 25 de Abril. Já estava escrito antes, claro. Tive apenas que introduzir algumas correcções, ou melhor, observações novas , muito a quente, sobretudo nos capítulos sobre a “Ideologia e o Quotidiano”. Eu diria que sobre o “Quotidiano” o livro é ainda hoje relativamente actual. Embora com toda a carga da linguagem de inspiração marxista… Eu nunca fui um marxista dogmático.
MJS – É possível ser-se marxista não dogmático?
JMP – Era o que eu tentava ser e acho que se pode ser. Não é por acaso que houve sempre leituras contraditórias do marxismo. Por exemplo, a do Althusser é bem particular como leitura, nada dogmática, mais filosófica. Senti-me sempre mais próximo do Marx economista, que era o que lidava com a matéria que me interessava.
MJS – Qual era a família de marxistas de que te sentias mais próximo?
JMP – Nunca gostei muito de pertencer a famílias. A minha única família foi o Sartre.
MJS – E continuas-lhe fiel?
JMP – No essencial, continuo.
MJS – E o que é que é esse essencial sartriano?
JMP – É que somos nós que nos escolhemos a nós próprios, somos nós que temos que fazer as nossas escolhas. Nem há espaço para pedir “conselho”, ideia a que sou particularmente avesso. O pior que nos pode acontecer é sermos postos perante um facto consumado, já decidido por outro. O problema desta abordagem é haver quem não tem escolha. A multiplicidade de escolhas é fundamental. A democracia devia ser acima de tudo a possibilidade das pessoas terem escolhas, terem alternativas.
MJS – Mas formalmente é.
JMP – Formalmente é, mas na prática o que é que a gente pode escolher? Eu próprio já fui posto perante o facto consumado de ter que votar num tipo que não me dizia nada. Só para evitar um perigo maior… E isso horroriza-me. Mas não reconheço que se fale depois em arrependimento, ou em sacrifício, ou em culpa. Pois se fui eu a decidir!…
MJS – Tens votado sempre?
JMP – Sempre. Não acredito muito neste sistema em que estamos limitados ao voto, mas tenho votado sempre.
MJS – Jean-Paul Sartre interessou-se positivamente, embora por pouco tempo, pela União Soviética, país sobre o qual nunca tiveste ilusões. Mas chegaste, se bem me lembro, a interessar-te por algumas experiências tentadas na China. Foi duro esse acumular de decepções sobre alguns modelos de organização social e do trabalho?
JMP - A experiência da União Soviética nunca me atraiu. Tudo o que se parece com uma organização militar da sociedade é-me intolerável. Quanto à China, com a sua “Revolução Cultural”, aquilo parecia-me diferente, um movimento de massas, aparentemente feito contra os próprios dirigentes do partido, e muitos foram saneados!, a ideia das comunas populares terem cada uma delas o seu pequeno alto forno e produzirem o seu próprio aço, era, entre outras, uma ideia que, à partida, me parecia interessante. Mas… a maior parte dessas ideias provaram ser um descalabro total. Fui influenciado por alguns analistas, pelo Bethelheim por exemplo, cujas ideias sobre a China se veio mais tarde a verificar estarem comprovadamente erradas.
MJS – Não me consta que alguma vez te tivesses aproximado do PC português, nem que os comunistas portugueses te tivessem “namorado”. Foste sempre um “independente”, mas deves ter sentido um qualquer fascínio por alguns movimentos? Os anarquistas, por exemplo, interessaram-te?
JMP – Tive vários fascínios, como tu dizes. Pelos anarquistas, claro. Pelo Pacifismo, também. Lia tudo: Tolstoi, Gandhi, os textos da 1ª Grande Guerra, Romain Rolland e o seu “Au dessus de la Mélée”, a conferência que organizou na Suíça, onde vivia e onde reuniu à sua volta várias pessoas dos países beligerantes…
MJS – Pode-se ser pacifista sendo-se de direita?
JMP – Se se pode ser pacifista sendo-se de direita? Deixa-me pensar. O que se pode, e há muitas provas disso, é ser-se pacifista e, a certa altura, passar-se para a direita. Houve muitos casos de pacifistas que, nos anos 30, se tornaram homens de extrema-direita.
MJS – Parece uma contradição nos termos.
JMP – Parece uma contradição. Custa-me tanto imaginar um homem de direita que seja pacifista, como me custa imaginar que um ecologista seja de direita. E, no entanto, que los hay, los hay. A ecologia não é uma coisa fóra deste mundo. Há uma ecologia de direita e uma de esquerda. Não há nada a fazer! A ecologia o que nunca quis foi politizar-se. Não na Alemanha, nem mesmo em França. Em Portugal tem sido tudo muito frágil, fogem da política como o diabo da cruz.
MJS – Não é bem assim. Tens os Verdes no Parlamento, ao lado do PCP. E nenhum partido da direita tem na ecologia um dos seus porta-estandartes.
JMP – Tens um caso respeitável em Portugal, o do Arquitecto Ribeiro Telles. Para além das questões técnicas que a ecologia levanta, a visão ecológica de Ribeiro Telles encerra uma imensa nostalgia da vida no campo. Há uma raiz de direita, conservadora, no liricizar o regresso à terra e aos encantos das hortas individuais dentro e à volta das grandes cidades.
MJS – Aí tenho dúvidas e devo dizer-te que sinto mesmo uma certa simpatia por alguns desses movimentos que recusam o stress das cidades, tal como estão hoje em dia organizadas, claustrofobicamente espartilhadas por asfalto e betão em altura.
JMP – Eu tenho também muita simpatia por quem pode ir para o monte alentejano disfrutar da beleza do pôr do sol. Mas as cidades são outra coisa. Não há volta a dar-lhe.
MJS – Estamos em 2001, como é que hoje se repartem as águas entre a esquerda e a direita?
JMP – Hoje as coisas põem-se um bocado nestes termos, exactamente como cada pessoa tem em si uma parte de feminino e uma parte de masculino, cada pessoa contém também em si uma parte de esquerda e uma parte de direita. Depois há os que têm um desses lados mais dominantes e são reconhecidos por serem de direita, ou de esquerda. E há também os que ora tomam uma posição de esquerda, ora uma de direita.
MJS – E o que é que é uma posição de esquerda?
JMP – Uma posição de esquerda é, e será sempre, a posição daqueles que querem transformar o mundo, para utilizar grandes palavras. E, no essencial, para reduzir as desigualdades e aumentar o leque de escolha das pessoas. Isso é que é o essencial e isso passa pela política. Para a esquerda, o político é a instância em que se tem que resolver os problemas de uma sociedade. E não o económico, como hoje. Pior que o económico, o financeiro. A globalização chegou a tal ponto que as pessoas nem se deram conta que um belo dia um governador de um estado brasileiro, Ademar Barros, decidiu não pagar uma dívida ao Estado brasileiro e o mundo, por isso, esteve à beira de uma crise mundial. Este problema, que deveria poder ser resolvido internamente, constituiu uma ameaça mundial. Estamos sujeitos, de um momento para o outro, a ter uma crise semelhante à de 1929, sem ninguém saber porquê! Porque as Bolsas, na realidade, são um jogo fundamentalmente especulativo, que têm relativamente pouco a ver com a chamada economia real, e essa é que se traduz no nível de vida das pessoas – a indústria, a agricultura, os serviços…
MJS – Do teu ponto de vista, este sistema global que existe nos tempos actuais, que se instalou no mundo, que o governa totalitariamente, não é reformável por dentro, através de soluções alternativas como, por exemplo, as enunciadas nas teses do Nobel indiano de Economia?
JMP - Não, não creio.
MJS – Mas isso é uma visão aterradoramente pessimista!
JMP – De algum modo é. Vamos lá a ver, este sistema tem como característica proclamar-se como o sistema definitivo. Portanto, acabou o futuro, acabou a História… Mas não é por acaso que as grandes empresas estão agora a querer ser empresas “verdes”, elas que eram os maiores inimigos da ecologia! Não é por acaso que arautos importantes do sistema actual começam a falar do papel social das empresas e dos problemas da exclusão social, porque eles intuem que “isto”, a continuar como está, pode vir efectivamente a dar uma crise social brutal e a nível mundial. Pode não ser a “bolha” especulativa, pode ser porque massas completamente marginalizadas, por qualquer processo, e a Net já está a servir para isso, podem de facto começar a resistir em força e a propor soluções alternativas. E isso pode, efectivamente, vir a conduzir a uma certa convulsão que altere o estado das coisas. E sabendo que “eles” temem que alguma coisa violenta possa acontecer, isso já dá alguma credibilidade aos que continuam a querer transformar o mundo.
MJS – Regressemos a Lisboa, à tua cidade. Foste sensível à polémica do elevador do Castelo?
JMP – Não, não fui muito sensível. Mas não tenho a certeza que um elevador para aquela zona fosse um disparate. Mesmo aquele, com toda a sua espectacularidade. O modo processual da decisão é que já me pareceu mais estranho, a maneira como tudo foi feito é que foi absolutamente incrível. Agora é preciso não nos esquecermos que as muralhas e as ameias do Castelo que nós conhecemos, foram todos redesenhados em 1920 e tal. Penso que já no tempo da ditadura.
MJS – Continuas a escrever, depois da tua única experiência ficcional – “O Dito e o Feito”?
JMP – Essa experiência foi uma espécie de brincadeira e um insucesso. Deu para perceber que a ficção não é de facto o meu universo de escrita. Mas continuo a escrever, no “Combate”. Centenas de artigos. Que escrevo com o mesmo rigor, a mesma pesquisa de documentação, como se fosse para um jornal com uma tiragem de 50.000 exemplares!
MJS – Mas porquê só no “Combate” que, julgo, tem uma divulgação bastante restrita?
JMP – Para já, porque foi o único jornal a convidar-me. Nestes últimos quinze anos, com todos os novos meios de comunicação que surgiram, da rádio, às televisões, à imprensa em geral, aos recentes portais da Net, nunca ninguém me pediu um comentário, um artigo, o que quer que fosse.
MJS – Estranho! Tornaste-te num céptico?
JMP – Acho que fui sempre um pouco. Em relação a mim próprio.
MJS – Dá-me exemplos de alguma coisa que tenhas feito muito bem?
JMP – Dançar e jogar futebol.
MJS – Sei que gostas muito de música, dos Românticos, na música clássica e, na popular, da canção - a francesa, a brasileira, a norte-americana, a portuguesa… Há algum disco recente da música portuguesa que te tenha encantado especialmente?
JMP – O fabuloso “Rio Grande”!
MJS – Qual é o papel que o Bloco de Esquerda, de que te sei próximo, veio representar no panorama político português?
JMP – Em poucas palavras e, no essencial, um papel muito importante: levantar problemas, ou em que ninguém tinha pensado, ou em que ninguém tinha pensado “dessa” maneira. O Bloco tem forçado a Assembleia a discutir coisas que não estavam na agenda, que nunca tinham sido agendadas e tem proposto, regularmente, ideias novas à mesa. Isso é muito positivo. Nestes mesmos termos, foi muito positiva a forma como o Fernando Rosas conduziu a sua campanha às presidenciais.
MJS – Dá-me a tua palavra de eleição.
JMP - Não diria que é de eleição. É a palavra que me ocorre, neste momento: criança. Porque elas nos dão o melhor ( um sorriso, um olhar, um gesto ), porque elas nos anunciam um futuro que está para além de nós e porque elas nos confrontam com as grandes tragédias deste mundo ( as famintas, as mutiladas ) e todos temos alguma responsabilidade nisso.