O Dito e o Feito: Cadernos 1984-1987. Salamandra. 1989


Augusto Abelaira, que o apresentou, chamou a O Dito e o Feito um livro de ensaios, no exacto sentido em que Montaigne, há quatro séculos, definiu os seus: experiências. Experiências mentais, exercícios de reflexão sobre a realidade circundante, para através da escrita encontrar a sabedoria.

[...] Ao contrário do que a existência de um personagem pode levar a supor, O Dito e o Feito é tudo menos um livro de ficção. Aliás, a bem dizer, são dois livros num só, intercalando-se quase capítulo a capítulo.

Rodrigues da Silva

Graficamente distintos pelo tipo de letra, são dois os cadernos que constituem este livro. Por um lado, textos extraídos de “Cadernos de 1984-1987” e, por outro, uma narrativa, a que chamaremos “JF”, baseada em grande parte em textos escritos pelo autor na juventude e guardados numa caixa que identificou como “Textos da caixa verde: 1956-1966” (veja em baixo). Revisitou-os em 1988 e foram eles que serviram de base à construção da personagem de JF.

Os documentos, organizados e identificados em parte pelo autor, foram arrumados em quatro caixas de arquivo. Incluem:

  • Originais manuscritos, dactiloscritos e provas tipográficas [1984-1988]
  • Textos da caixa verde [1956-1966]
  • Recortes dos artigos de imprensa citados nos cadernos [1972-1990] e outros sobre O Dito e o Feito [1989-1990]
  • Outra documentação.

 

O inventário está disponível aqui.





Textos da caixa verde: 1956-1966


25 de Setembro [1987] – Na semana passada abri, nem sei bem porquê, ao fim de muitos anos, a caixa de cartão verde onde se foram acumulando todos os papéis soltos que, por aqui e por ali, ao acaso das diárias horas de café, fui escrevinhando desde os distantes tempos do Técnico. Embora nem todos datados, não é difícil situá-los nos dez anos que vão de 1956 a 1966. Depois disso, passei a escrever na imprensa, a começar pela Seara, e abandonei as reflexões pessoais que me habituara a registar, quando calhava, nesses papelinhos. Textos sem destino, de acaso mas também de necessidade, eles reflectem o que foi a minha difícil entrada no mundo adulto, aliás bem mais tardia que o habitual.  E, no entanto, pouco há neles de íntimo, apenas um sugerido mal-estar, que parece ser o de qualquer adolescente (e eu já não o era), de quem se não sente bem na própria pele e aceita mal a dos outros. De quem não se entende, nem entende o que o rodeia – e ainda não sabe, mas talvez intua, que se trata afinal  da mesma coisa. Textos de iniciação, de aprendizagem, desajeitados e, muitos deles, pretensiosos, reconheço nesses papéis o esforço das ideias politicas e sociais que depois, melhor ou pior, tomaram forma, ao contacto dos livros e da vida.

O Dito e o Feito, p. 218-219