1. Uma linguagem. Uma burocracia.
“Fui um funcionário público na Comunidade Europeia e conheço a máquina por dentro. É uma espécie de novo soviete. Os seguidores da Escola de Chicago são cheios de contradições, querem fomentar a livre concorrência como funcionários públicos”
Michel Godet, especialista em prospectiva
Iniciativa legislativa. Princípio da subsidiaridade. Reuniões e não-reuniões. Cooperação transfronteiriça. ACPs. Maastricht e os seus três pilares. Indemnizações compen- satórias. 300 medidas (para o Mercado Único). Transparência. DG I a DG XXIII. Pareceres do CES. SME (e SME2). Construção europeia. ECOFIN. Livros Verdes. BC-NET. Directivas. Eixo Paris-Bona. Expedições e chegadas. Regiões ultra-periféricas. “Proposta de directiva do Conselho que altera o Capítulo 2 do Anexo II da Directiva 92/118/CEE do Conselho, que define as condições sanitárias e de polícia sanitária que regem o comércio e as importações na Comunidade de produtos não sujeitos, no que respeita às referidas condições, às regulamentações comunitárias específicas referidas no Capítulo 1 do Anexo A da Directiva 89/662/CEE e, no que respeita aos agentes patogénicos, da Directiva 90/425/CEE (apresentada pela Comissão)”. Relatório Cecchini. Auxílios estatais. Livre prática. Quadros Comunitários de Apoio. Cidadania europeia. BEI. SPRINT. Programas-Quadro. Cimeiras. Pacote(s) Delors. Livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas. Relatórios do Parlamento Europeu. Acordos de comércio com países terceiros. Países “in” e “out”. “Opting in” e “Opting out”. PAC e Nova PAC. “Policy makers”. “Short lists”. COREPER. Pacto de estabilidade. Grupo de reflexão. FSE. Recomendações. Princípio de solidariedade. PHARE. Fundo de Coesão. Livros Brancos. “Proposta de regulamento (CE) do Conselho que altera o Regulamento (CEE) do Conselho que proíbe a utilização de armadilhas de mandíbulas na Comunidade, bem como a introdução na Comunidade de peles e produtos manufacturados de certas espécies de animais selvagens originárias de países que utilizam para a sua captura armadilhas de mandíbulas ou métodos não conformes com as normas internacionais de armadilhagem sem crueldade (apresentada pela Comissão)”. União Europeia. Acórdãos do Tribunal de Justiça. Moeda Única. Troika comunitária. CIG. STRIDE. Política de concorrência. Critérios de convergência nominal. FED. Alargamento. Iniciativas Comunitárias. FEDER. Lomé I a IV. PESC. “Made in Europa”. CEN/CENELEC. EICs. Schengen. Compras públicas. TACIS. Presidência. Acto Único. Comissão/Colégio de Comissários. Regulamentos. RESIDER. EUREKA. Direitos anti-dumping. Política regional. Fundos Estruturais e Linhas orçamentais específicas. Custos da não-Europa. Princípio da condicionalidade. “Parecer da Comissão nos termos do nº 2, alínea d), do artigo 189º B do Tratado CE, sobre as alterações do Parlamento Europeu à posição comum do Conselho respeitante à proposta de Directiva 79/112/CEE relativa à aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes à rotulagem, apresentação e publicidade dos géneros alimentícios, que altera a proposta da Comissão nos termos do nº 2 do artigo 189º A do Tratado CE”.
Fastidioso, mas indispensável. Afinal um escassíssimo rol de expressões, conceitos, instituições, programas, siglas, títulos intermináveis e indecifráveis ou pitorescos de documentos comunitários, instrumentos de política e muitas coisas mais. Cada uma dessas “coisas” (e poderiam encher-se páginas e páginas) quer dizer “qualquer coisa” que, na maioria dos casos, escapa totalmente ao comum dos mortais, falo dos europeus, claro. Algumas delas são-nos aparentemente familiares, de tanto as vermos e ouvirmos todos os dias nos órgãos de comunicação social. Mas, a menos que uma ou outra já se nos tenha atravessado no caminho (as que têm que ver com subsídios, por ex.), duvido que o cidadão comum, em qualquer dos países europeus, seja capaz de alinhavar sobre elas mais do que umas frases desconexas. Na realidade elas dizem mesmo “qualquer coisa”, mas apenas aos iniciados. Estamos, obviamente, perante uma linguagem de iniciados.
Quem a produz e quem a usa no seu dia-a-dia ? Aquilo a que chamarei uma euro-burocracia alargada, cujo núcleo duro são os milhares de funcionários da Comissão e das outras instituições comunitárias, seus principais produtores e utilizadores. Mas, numa segunda linha, temos os muitos mais que, em cada país, se ocupam directamente com as “questões europeias” : membros dos Governos, os seus gabinetes, funcionários da administração, os representantes num sem fim de reuniões e comissões especializadas, os membros das estruturas de gestão de programas financiados pelos Fundos Estruturais, e por aí fora. Estes são quase só (penso sobretudo no caso português) utilizadores mais ou menos aplicados. Como o são também, em domínios mais limitados, segundo as áreas em que actuam, universitários, fornecedores de bens e serviços, e todos aqueles que pretendem candidatar-se a este ou àquele programa, quando não remetem a sua sorte para assessores técnicos, que lhes traduzem por miúdos aquilo que precisam de saber.
Enfim, numa terceira franja situaremos dois grupos que giram em torno deste mundo comunitário e têm obrigatoriamente de possuir bons conhecimentos da euro-linguagem : os lobbies que actuam junto da Comissão e os jornalistas especializados em matéria europeia. Os primeiros representam empresas, grupos e interesses organizados, em geral, e procuram influenciar a seu favor, tão cedo quanto possível, a legislação em preparação sobre matérias que lhes dizem respeito. Os segundos são, naturalmente, um elo vital do sistema. De tanto frequentarem Bruxelas, as cimeiras, os acontecimentos-chave, bem como os seus “eurocratas de estimação”, acabam por ser, mesmo os mais sérios e competentes, os verdadeiros porta-vozes da “boa nova”, quase sempre prontos a desvendar em qualquer espírito mais crítico ou mais céptico (palavra que também pertence ao código) um desprezável velho do Restelo, que esconde, por vezes sob a capa de “convicto europeísmo” de princípio, a sua óbvia aversão ao “grande projecto”. Certos editorialistas chegam a falar como se fossem candidatos à presidência da Comissão, tal a determinação com que afirmam o que devia ou não fazer (ou ter feito) “a Europa”, que exactos caminhos terá de trilhar (a Europa), e tal o desespero em que os lança a “falta de visão política” dos líderes europeus, a sua tibieza, a sua incapacidade de se libertarem das teias mesquinhas da política local e ascenderem às prometedoras luzes de um projecto supra-nacional. Este mecanismo, que na prática vicia o debate sobre as questões europeias, não pode deixar de ser considerado um condicionamento ideológico, em particular no caso português, dado o baixo nível educacional e a extrema dependência dos dinheiros comunitários. Um referendo sobre Maastricht em Portugal conduziria por certo ao triunfo do “sim” pelas piores razões, ou seja, aquelas mesmas - a ignorância e a obsessão dos subsídios -, somadas ao “europeísmo” militante dos dois partidos com meios para grandes campanhas mediáticas. Curiosamente, em alguns dos países com outras condições que fizeram referendos (França, Dinamarca, Noruega), os resultados decepcionantes foram interpretados pelos comentadores encartados como consequência do insuficiente esclarecimento dos eleitores, como se, após acérrimas campanhas, só não tivessem podido esclarecer-se os partidários do “não”, ninguém levantando a hipótese contrária .
Uma coisa é certa : uma linguagem própria, uma burocracia - ambas são instrumentos de um poder, para além de serem poder em si-mesmas. Não nasceram por geração espontânea. Não são opacas por acaso. Que “grande desígnio”, vindo de onde, lhes cabe pôr em marcha ?
2 - A “ideia” e a “construção” europeias.
“A Conferência Intergovernamental para a revisão doTratado pode significar uma nova descolagem do ideal europeu”
in “Tribuna da Europa”, órgão do Parlamen-to Europeu
“ Concretização de um sonho milenar, a Europa é hoje uma realidade em marcha”
Alain Herbeth, jornalista, no livro “La Cons- truction Européenne”
“A União Monetária não é um programa de ajuda ao emprego”
Hans Tietmeyer, presidente do Bundesbank
Antes de mais, e para que fique claro, não se me afigura discutível a existência de qualquer coisa a que se possa chamar de “cultura europeia”, nem mais nem menos respeitável do que outras culturas de outras regiões do mundo. Para não ir mais longe : Idade Clássica, Judaísmo/Cristianismo, caldeamento medieval de povos sem conta que aqui se instalaram no primeiro milénio, Renascimento, Reforma, os Bacon, Descartes, Newton (e tantos outros), os iluministas, a Revolução Francesa, as revoluções científica e industrial, os românticos, as correntes estéticas, literárias e filosóficas da mais recente “modernidade” , as lutas sociais, a Revolução Russa, e muito mais, deram forma política e culturalmente à Europa moderna. Ao mesmo tempo, cada nação - tendendo para Estado-nação a partir do século passado - bebeu de tudo isso e mais ou menos para tudo isso contribuiu, enquanto descobria na sua vivência comum identidades e traços culturais próprios. Simplesmente, aquilo a que hoje se chama com frequência a “ideia europeia” (ou ideal europeu) vai bem mais longe do que a “cultura europeia”, que de resto não precisa propriamente de ser “construída”, ainda que não tenha chegado para evitar que os europeus se entre-dizimassem ao longo dos séculos e dizimassem povos de culturas longínquas, em nome da “universalidade” dos seus valores, coisa excelente para encobrir propósitos bem mais terrenos. Que mais não fosse por isso, fique claro também que acredito nas virtudes do crescente intercâmbio entre os cidadãos europeus e não ignoro que a integração europeia nos trouxe, a nós portugueses, o início de um eternamente adiado reencontro entre os povos peninsulares (que é muito mais do que comércio). Mas vamos então à “ideia europeia”, já que nos dizem ser essa a linha de rumo que orienta os “construtores da Europa” e de que a euro-burocracia seria o mero corpo executivo.
Pela força das armas, um Carlos Magno ou um Napoleão (até mesmo pelos acasos dinásticos, um Carlos V) tiveram sob a sua tutela tanto ou mais território do que a Europa do Tratado de Roma. Há quem veja nisso, à mistura com outros “sinais” , a emergência recorrente ao longo de séculos de uma “ideia europeia”, ou seja de uma apetência para a união dos povos europeus, ou para os unir, que nesses tempos não podia, é claro, manifestar-se por formas democráticas, mas tão-só pela vontade dos soberanos. Numa mais que apologética “História da Europa”, Duroselle intitula um capítulo “Carlos Magno, rei da Europa ?”, mas outro “Napoleão ou a falsa Europa da conquista”. No entanto, termina este último com um texto a que chama “A Europa de Santa-Helena”, em que sublinha as concepções do ex-imperador relativamente à “Europa ideal”, citando as palavras que De las Cases põe na sua boca (no famoso “Memorial”) : “Uma das minhas grandes ideias teria sido a aglomeração, a concentração dos mesmos povos geográficos que, fragmentados, apenas têm as revoluções e a política (...) Gostaria de ter feito de todos os povos [europeus] um só único corpo de nações (...) Apenas nesta situação se teriam encontrado mais hipóteses de promover por toda a parte a unidade dos códigos, dos princípios, das opiniões, dos sentimentos, dos pontos de vista e dos interesses” (sublinhado meu). Não é por acaso que o autor do livro cita estes propósitos platónicos de quem já não tem poder para os pôr em prática: é fácil presumir que os subscreveria.
Se Lavoisier falasse de História, talvez dissesse que, também nela, “nada se perde, tudo se transforma”. Bom argumento para um Duroselle ou outros “iluminados” nos explicarem porque, nas circunstâncias precisas do 2º pós-guerra deste século, virão a ser os dirigentes das grandes “democracias europeias” (vencedores e vencidos do conflito) a retomar a famosa “ideia”, agora sim, ao que consta, “pela livre vontade dos povos”. Pelos anos 50, os dirigentes europeus vão deliberadamente empenhar-se na ambição de, unindo os mercados, criar prosperidade económica numa Europa prometida à paz duradoura que nunca conhecera, se não mesmo a uma futura união política, na mente dos mais “visionários”. Estes últimos seriam então, na versão “histórico-ideológica” que temos vindo a acompanhar, os continuadores modernos dessa velha “aspiração dos povos europeus”. Na realidade, é sabido que, em pano de fundo estavam o fantasma de Vesrsalhes (e da ascensão hitleriana) e a necessidade estratégica de endostar à fronteira da guerra fria uma montra do sucesso capitalista ocidental.
Não sei desde quando assentou arraiais a expressão “construção europeia”, mas recordo que até aos anos 80 as Comunidades Europeias eram correntemente designadas por “Mercado Comum” e as suas manifestações mais visíveis eram o desarmamento alfandegário interno (em simultâneo com uma pauta exterior comum) e a Política Agrícola Comum, já que as intervenções nos domínios do Carvão e do Aço - o começo de tudo - e da Energia Atómica eram muito especializadas e menos visíveis. Seja como for, esses foram os alicerces de que se partiu para a “construção europeia”, hoje sim inegavelmente em curso, pois Maastricht constitui um ponto decisivo de viragem e de aceleração . E é a ideia mesma de construção que me interessa, já que nela entronca tudo o que vem de trás. Se existe a tal poderosa burocracia, ela destina-se a construir o quê e como ? Se há um edifício em construção, onde está o projecto, quem nele se vai instalar ? Uma ideia, ainda que idílica e difusa, pode dar para motivar e mobilizar, mas não chega para pôr de pé um edifício.
A verdade é que não teria escrito este artigo se não fosse o acaso de ter aberto há tempos um livro em que, vai para quinze anos, me debrucei com algum pormenor sobre o vigoroso debate económico (e político) travado na primeira metade dos anos 20 na Rússia pós-revolucionária. Saltou-me à vista, em particular, a seguinte definição dada por Bazarov, um economista não-bolchevique, mas partidário da planificação : “Um plano a prazo (perspectivo) não é apenas uma previsão, mas uma directiva - não apenas um estudo genético, mas também uma construção teleológica -, não apenas uma consideração de possibilidades objectivas, mas um sistema de medidas necessárias para uma utilização óptima dessas possibilidades”. Reconheci neste texto algumas das tais palavras/ideias que fazem parte do jargão comunitário, e até das que nos parecem mais familiares, e aventurei-me a descobrir algumas analogias, ou “ares de família”, não mais do que isso, que dão para uma reflexão sobre a natureza e objectivos da União Europeia, cujo futuro nos dizem estar justamente neste momento na mesa ( e nos gabinetes e corredores) em velhos palácios europeus ou em imensos caixotes vidrados típicos da arquitectura institucional “fim de século”.
Não me parece discutível que a “construção europeia”, tal como tomou forma a partir do Acto Único, e sobretudo com Maastricht, corresponda razoavelmente à noção de “construção teleológica”, isto é, voluntarista, geradora de rupturas, visando uma transformação profunda e global da economia e da sociedade em direcção a um objectivo pré-definido (por oposição a uma construção “genética”, feita em continuidade com o passado, por transformações graduais). Uma construção teleológica, por mais “democrático” que seja o contexto, cria desequilíbrios “motores”, determina alterações abruptas nos modos de vida e de comportamento, logo, defronta resistências, obrigando a sanções e/ou compensações, em simultâneo com campanhas ideológicas para mobilizar os que serão afectados. A penosa caminhada para a “Moeda Única” , pautada por rigorosos “critérios de convergência”, não será um bom exemplo de voluntarismo complementado por sanções ou ameaças de sanções (por aplicação do princípio da condicionalidade) para quem não cumprir e de compensações para atenuar os efeitos perversos do cumprimento nos países mais “atrasados” ? Não é ela acompanhada por um condicionamento ideológico que, como já vimos, visa apontar a dedo os menos “crentes” e despertar em todos o orgulho de pertencerem a um país que foi (vai ser !) capaz de cumprir ? A construção europeia é, sem sombra de dúvidas, um processo de “engenharia social” (utópica, acrescentaria Popper) meticuloso e determinado, uma antecipação do futuro, apresentado como final feliz de uma transição cujos custos parecerão então ter sido irrisórios. Que futuro ? A realização da “ideia europeia”, séculos e séculos adiada, e conseguida agora pela vontade expressa e entusiástica dos povos europeus ? Adiante se verá que os “construtores da Europa” não são intelectuais visionários, mas homens pragmáticos que sabem para onde querem ir e até o proclamam por vezes com a rudeza dos “fortes” (veja-se a citação do presidente do Bundesbank).
Outra palavras-chave da definição de Bazarov : directiva, sistema de medidas. Directiva, no sentido de “Plano”, nunca existiu em rigor nos quarenta anos de caminhada comunitária. No entanto, desde os Tratados fundadores até aos documentos produzidos na última década, é clara evolução no sentido de disciplinar os Estados-membros, fixando objectivos, prazos e métodos para os atingir. O Acto Único e, mais ainda, o Tratado de Maastricht já apresentam características que os aproximam da ideia de Plano, o suficiente para que a analogia seja permitida. Directivas, no plural, isso é o pão-nosso-de-cada-dia da “construção europeia” : elas constituem a base da legislação europeia, sendo obrigatoriamente transponíveis para a legislação nacional. Cabe à Comissão, e só a ela, propô-las para decisão do Conselho de Ministros (dos Estados-membros), mas ainda há bem pouco um governante português se queixou publicamente de que “é difícil inverter, no Conselho, as posições pré-estabelecidas pela Comissão”, e de que esta tem mostrado uma “gestão despudorada do poder” e uma frequente vulnerabilidade às “sensibilidades nacionais” com maior peso em Bruxelas (PÚBLICO, 17.5.1996). Acrescente-se: e aos lobbies que actuam em Bruxelas. A contrabalançar esse poder acenam-nos com o princípio da subsidiaridade, isto é, o de que “as decisões devem ser tomadas ao nível - comunitário, nacional, regional, local - em que, caso a caso, sejam mais eficientes”. Mas, ao que parece, o nível nacional está prometido cada vez mais à mera administração interna, à gestão dos orçamentos que nos forem permitidos e dos fundos que nos forem atribuídos (em nome, esses, do “princípio da solidariedade”...) e à busca de soluções de “problemas de somenos”, que a União deixa à competência dos Estados-membros, como sejam os do desemprego, da exclusão social ou das “reformas” da Segurança Social ou das leis do trabalho. O relatório do Grupo de reflexão encarregado de preparar a agenda da actual Conferência inter-governamental refere que “o reforço da competitividade, induzido pela integração europeia, é a chave para a criação de empregos. No entanto há que reconhecer que, por um lado, isto tem lugar acima de tudo através de empresas situadas a nível local ; por outro lado, os Estados continuam a ser os principais agentes responsáveis por assegurar a coesão económica e social e por auxiliar os que vivem nas margens da sociedade”.
Quanto ao sistema de medidas, bastará lembrar as famosas 300 medidas para preparar o não menos famoso Mercado Único. Mas quando se vive de subsídios, como sucede em Portugal, quem não teve já de descobrir, entre as centenas de medidas de dezenas de programas, quais as que mais facilmente lhe renderão algum dinheiro ? Estar na medida certa no momento certo, passou mesmo a ser entre nós uma regra de vida.
Estaremos, então, face a algo com os contornos de um Plano ?
3 - Um “Plano ultra-liberal” ?
“Guterres deixou ontem (...) uma mensagem de força e união, apelando á ‘concertação de interesses’ para ganhar a luta contra o ‘fundamentalismo de Bruxelas’ e a potencial hegemonia dos países ricos, como a Alemanha”
PÚBLICO, 5.5.96 ; reportagem sobre o V Con- gresso de Jovens Empresários
“O chefe do Governo de Lisboa reiterou a intenção de atingir a meta dos critérios da UEM em 1999. O número um do executivo de Bonn disse que ‘não há melhor política social’ do que essa”
PÚBLICO, 31.5.96 ; reportagem sobre a visita de Kohl a Lisboa
A ideia de Plano, com P grande, enquanto documento imperativo visando a transformação global de uma sociedade, de uma economia, ideia historicamente marcada pelo lançamento dos Planos Quinquenais soviéticos, corresponde ao nível máximo de intervenção do Estado e está, obviamente nos antípodas do ideário liberal. O liberalismo económico puro rejeita a intervenção do Estado na economia em nome da “eficiência” do sistema, e por mais forte razão o caso-limite de um Plano, enquanto os ideólogos do liberalismo político o repudiam como atentado às liberdades individuais. No entanto, no clima intervencionista e keynesiano do 2º pós-guerra, a par de nacionalizações sem conta, veio a haver Planos em diversos países europeus, disciplinadores do investimento público e das políticas sociais, mas apenas “indicativos” para os agentes privados. Ao mesmo tempo, a descolonização impulsionou os estudos de “Economia do desenvolvimento”, e muitos foram os novos países que viram financiados pelo Banco Mundial grandes projectos integrados nos respectivos Planos de Desenvolvimento (de onde resultaram, com o correr dos anos, colossais fortunas de ditadores locais e algumas indústrias e obras públicas por onde hoje, degradadas ou semi-desertas, talvez vagueiem sem destino milhares de famélicos refugiados).
Na Europa, os chamados “30 gloriosos” anos de crescimento económico assentaram, como se sabe, em políticas acentuadamente intervencionistas, sem que por isso deixassem de ser economias de mercado. O Mercado Comum, esse, nasceu intervencionista e proteccionista : no pachorrento caminho de Roma ao Acto Único coabitaram a liberalização das trocas comerciais - a que, diga-se, os países se furtaram como puderam - com um pronunciado proteccionismo externo e com intervenções de carácter proteccionista na agricultura (preços subsidiados, absorção de excedentes) e de carácter reestruturante na siderurgia, no carvão ou na construção naval, enquanto se aceitava sem particulares reservas a manutenção de avantajados e poderosos “sectores públicos” (empresas de bens e de serviços, monopólios estatais, sistemas de segurança social).
Passados os conturbados anos 70 e os primeiros anos 80, um revigorado neo-liberalismo vai emergir como “solução para todos os problemas”: Escola de Chicago, thatcherismo, concorrência japonesa (mais tarde dos “dragões asiáticos”, por fim da China também), queda do império soviético, novas tecnologias da comunicação, Uruguay Round, globalização - tudo isso veio contribuir para a ruptura com o anterior modelo de “compromisso social-democrata” (o “fordismo”, como é conhecido nos meios académicos), logo para potenciar um processo generalizado de obsessiva liberalização : privatizações e desregulamentação são as novas palavras de ordem para os governos, e mais recentemente reengenharia, deslocalização, outsourcing para os grupos empresariais . Referindo-se à competitividade, que passou a ser a palavra-chave dos novos tempos, disse em entrevista o actual ministro da economia : “O nosso problema é que a Europa é um espaço tendencialmente de moeda forte, de nível elevado de protecção social e de ambiente de qualidade”, ou seja, a Europa parte de trás, por isso mesmo terá de andar mais depressa, e por certo perder alguns desses “luxos”, já que dificilmente poderá competir com quem não os tem. Um economista do MIT, em entrevista ao Spiegel, deixou sérios avisos : “As mudanças têm de ser radicais. Mudanças pontuais não ajudarão a Alemanha a sair da crise. (...) Os empresários empregariam mais pessoas se os trabalhadores não fossem uma espécie de Rembrandts , tão valiosos que não nos podemos separar deles. (...) A Europa terá, finalmente, de adoptar estas transformações violentas”. Como forçar os povos europeus a essa violência, que será feita, ninguém duvida, de elevadíssimos custos sociais (desemprego, precaridade do trabalho, desmantelamento/privatização dos sistemas de Segurança Social, acentuação de desigualdades, exclusão, insegurança quanto ao futuro) e políticos (erosão dos mecanismos democráticos, por imperfeitos que sejam)?
Na realidade, este processo já está em curso, e disso são inequívoco sinal, para além de outros, os quase 20 milhões de desempregados na União Europeia. É óptimo os jovens europeus poderem circular livremente por outros países, obterem bolsas para estudar ou estagiar em universidades desses países, encontrarem outros jovens, conhecerem outras culturas e modos de viver, mas quando procurarem trabalho e não o encontrarem, irão eles aceitar isso como um preço justo pela realização do “ideal europeu” ? E até nisso se enganariam, ainda que o aceitassem. Com efeito, o que está em curso é a tal transformação radical da economia e da sociedade europeias, e para o conseguir em tempo útil assistimos a um inesperado encontro entre inconciliáveis inimigos : o Plano (ou, se preferirem, um intervencionismo sistemático e programado) e o mercado, o Plano e o ultra-liberalismo. Plano sem nome, de paternidade difusa, distante, não-identificável e por isso dificilmente controlável. Trata-se, em definitivo, de um dispositivo de natureza quase-imperativa, através do qual se visa consolidar em poucos anos um bloco económico-político sob liderança alemã, capaz de competir nos mercados mundiais, dotado de moeda única e de políticas externa e de defesa comuns. Ou seja, com os atributos essenciais de um Estado, venha ou não a tomar essa forma. Se o projecto triunfar, o que está longe de assegurado, os historiadores daqui a meio século verão esse momento histórico como aquele em que, após duas oportunidades/guerras perdidas, a Alemanha ascendeu enfim à hegemonia sobre um continente a seus pés: a pax germana. E os grandes potentados económicos e financeiros europeus, que têm sido actores influentes junto da Comissão, não terão de que se queixar, eles que, operando já hoje a nível mundial, serão os maiores beneficiários das vantagens da Moeda Única e da liberalização dos mercados, não constando que a “ideia europeia” faça parte dos seus critérios de decisão.
Voltando à fase actual - o período de transição, que se presta também a algumas analogias ... - não parece descabido designá-la, adaptando uma expressão forjada em tempos para designar os então chamados “países socialistas”, como uma “economia de mercado de direcção central”. Será contraditório, mas nem é uma novidade. O desenvolvimento coreano não andou longe disso, e a própria Alemanha não agiu de outro modo no processo de integração da ex-RDA na economia de mercado da ex-República Federal . E muitos outros exemplos não faltariam. A diferença fundamental está em que, no caso da União Europeia, se trata de “integrar” 15 países diferentes (por agora) em algo parecido com um único país.
Claro que, num espaço institucionalmente democrático, “direcção central” não significa, escusava dizê-lo, que os cidadãos, a todos os níveis e em todas as actividades, se sintam constrangidos a cumprir “ordens” por métodos policiais ou censoriais. Mas nem por isso deixamos, sem nos darmos conta, de ser afectados no nosso quotidiano, uns mais do que outros, por decisões comunitárias nos mais variados domínios, comportando-nos de algum modo de acordo com o que “a Europa” determinou que é bom para “a Europa”, logo, subentende-se, para nós também. E que, em muitos casos, até pode ser (não é essa a questão): a protecção do ambiente é apenas um exemplo do que, ainda que insuficiente, em Portugal nunca por certo teria sido feito de outro modo.
A Comissão é o retrato mesmo desta contradição entre a premência de liberalizar e a necessidade, para o fazer, de planificar e impor essa liberalização. É a isso que se refere Godet, na epígrafe inicial, onde a menção (infeliz) a uma “espécie de novo soviete” poderá ser traduzida por “um grupo militante determinado por uma ideologia”, no caso a da Escola de Chicago. Daquela contradição decorre que a Comissão se desdobra em várias funções implícitas. Em primeiro lugar justamente a ideologia e a prática liberalizantes, aquilo a que alguns chamam “o fundamentalismo de Bruxelas”, sobretudo os governantes nacionais perante auditórios sensíveis (v. citação de Guterres; e também Sousa Franco já usou a expressão, sem que nem um nem outro ousem questionar os objectivos monetário-financeiros da convergência, pois é preciso sossegar “os mercados” e assegurar os indispensáveis subsídios). Depois, sobrepondo-se a esta, a vertigem/ideologia da harmonização, da homogeneização, da uniformização, do “apagamento das fronteiras” internas (as já citadas “300 medidas”, a mania da “cooperação entre regiões transfronteiriças”, a abolição - no papel - do “comércio externo” entre Estados-membros, já considerados pela ideologia como meras regiões de um único país, etc.), e de protecção das fronteiras externas, cada vez menos contra a entrada de mercadorias - GATT oblige - , cada vez mais contra a invasão de “estranhos”, amanhã talvez contra “o inimigo”. Tudo isto impõe a elaboração de regulamentos, de directivas, de recomendações sobre tudo quanto há : desde as armadilhas de mandíbulas (v. lista inicial) passando, em caricatura, pelo tipo de sapatos que os domingueiros pescadores à linha devem utilizar, até aos dispositivos de cooperação inter-policial. Por fim, a função “compensatória”, que assenta na distinção entre países “motores” e países/regiões que “têm de ser ajudados” para andar mais depressa e cumprir as metas fixadas. É a imensa área dos Fundos Estruturais e de Coesão, ou, noutra perspectiva, das indemnizações pelos “sacrifícios” que os últimos (ou parte deles) têm de consentir pela aplicação de medidas a que não puderam, ou quiseram, opor-se. No caso português, um Relatório recente do Parlamento Europeu reconhece, no entanto, que, “apesar dos efeitos globais do 1º QCA”, “se está a assistir a uma agudização das diferenças entre as regiões mais ricas e as regiões mais pobres”, ignorando embora o agravamento das disparidades sociais e a distância imensa a que o país se mantém nos níveis de desenvolvimento “europeus”. O mesmo se tem vindo a passar, aliás, em todas as regiões mais atrasadas da Europa (veja-se o mezzogiorno italiano) nos últimos 30 anos : não só continuam a sê-lo hoje, como se lhe vieram juntar muitas outras (bacias siderúrgicas e mineiras, por ex.). E dificilmente poderia ser de outro modo, já que, em economia de mercado, não há subsídios que convençam uma massa crítica de investidores a localizar-se em zonas deprimidas ou menos desenvolvidas. Basta pensar até que ponto um único investimento, no caso o da Auto-Europa, pesa hoje decisivamente nas exportações portuguesas, mascarando a sua evolução real.
Mas onde já vai afinal a “ideia europeia” de livre união dos povos, dos cidadãos europeus, se é que alguma vez ela realmente existiu ? Só mesmo se for, na mente de alguns ideólogos mais fervorosos, a do desterrado Bonaparte, que sonhava com a unidade até “das opiniões, dos sentimentos, dos pontos de vista”, visão aliás bem pouco tranquilizadora.
Algo mais sobre a questão da democracia. Economia de mercado livre e democracia não são dois inseparáveis companheiros, ao que nos dizem ? Liberalizar o mercado não será, pois, uma garantia de reforço da democracia ? Chamemos-lhe Plano ou seja o que for, a “liberalização programada” não tem sido, de resto, democraticamente decidida e conduzida ? Não são governos todos democraticamente eleitos os que, em definitivo, têm por vontade própria subscrito todos os documentos de que é feita a “construção europeia” ? Em primeiro lugar, é bem sabido que não existe no mundo qualquer “mercado perfeito”, nenhum país em que exista o “Estado mínimo” sem qualquer interferência na área económica. Na realidade, só os teóricos liberais mais intransigentes falam disso, já que os interesses empresariais têm largamente beneficiado das compras e dos avultados apoios do Estado (no nosso particular caso, muitos empresários portugueses morreriam só de pensar que o Estado “fechava a torneira”), e também largamente influenciado a legislação a seu favor. Mais ainda, os empresários sempre souberam conviver em excelente harmonia com regimes autoritários, vejam-se os casos dos “admiráveis” países asiáticos e o das antigas ditaduras europeias (ou sul-americanas), não constando que tenham estado sempre na primeira linha dos que se bateram pela democracia. Quanto à União Europeia, e sem nos determos na não-legitimidade democrática da Comissão, basta ver as próprias “preocupações” quanto à “cidadania europeia” e quanto à “transparência” dos processos comunitários que constam da agenda da Conferência sobre a reforma de Maastricht. Mas nem era preciso. Desde o início deste artigo se procurou demonstrar até que ponto o comum cidadão europeu desconhece aquilo em que está envolvido, limitando-se sentir os efeitos (positivos ou negativos) de decisões que totalmente lhe escapam.
De Portugal, periférico e dependente, quase não falei até agora, e não vou falar. Não era essa a intenção do texto. Recordo apenas uma interessante originalidade. Se a União Europeia prosseguir no caminho apontado, isso tenderá a produzir um crescente apagamento dos poderes dos governos nacionais, sobretudo daqueles que não comandam os acontecimentos, tendo apenas de gerir as suas consequências internas. Mas não tanto em Portugal, sob condição de que continuem a chegar os famosos subsídios. Na realidade, em fase de acelerada liberalização europeia, talvez entre nós nunca tenha sido tão forte (sobretudo tão disseminado, por óbvias razões eleitorais) o controlo do Estado sobre a economia e a sociedade, e tão baixo o papel da chamada sociedade civil, que, na imprecisão do conceito, somos afinal todos nós, cidadãos - não meros eleitores. Logo, tão condicionada a própria democracia. A libertação dessa tutela é tarefa multifacetada e complexa, desafio político a convocar a “vontade de desenvolvimento” e o empenho democrático dos portugueses, sem a qual Portugal virá cada vez mais a assemelhar-se a uma Madeira da Europa. E os seus dirigentes a uma espécie de Jardins europeus, porventura em mais polido. À beira-mar plantados, claro.