TRÊS NOTAS SOBRE O PORTUGAL EUROPEU
João Martins Pereira
COMBATE, Março 1992
1. Suspeito
que se ainda houvesse cafés em Lisboa (os últimos estão a morrer às mãos dos
BCP e BCI) as “grandes questões europeias” estariam ausentes das pachorrentas
conversas de amigos, como o estarão por certo nas tertúlias que ainda vão
subsistindo por esse país fora. E tenho boas razões para suspeitar, quando vejo
que os próprios meios de comunicação de âmbito nacional pouco se ocupam com
tais debates. Limitam-se a ir dando notícias sobre coisas pouco acessíveis aos
leigos (“Maastricht”, “pacote Delors 2”, “UEM”, ou mesmo a “Presidência
Portuguesa”), a ir publicando (ou emitindo) um ou outro editorial pouco
esclarecedor, uma ou outra “coluna de opinião”, uma ou outra mesa-redonda com
deputados europeus – tudo isto numa linguagem para entendidos, muito mais para
mostrar que o são, o que nem sempre é verdade.
E,
no entanto, subrepticiamente, quase clandestinamente, muita gente em Portugal
já teve o seu quinhão de “seiva europeia” (leia-se “dinheiro”), que nos tem
chegado com alguma abundância. Nessa espécie de “estado de graça” que tem sido
o período de transição até à quase plena integração em fins deste ano, uns
muito largos milhões de contos terão sido distribuídos por empresas públicas e
privadas (em subsídios ou contratos), agricultores, autarquias, universidades,
gabinetes e monitores de formação profissional, consultores, etc., quer
directamente vindos de Bruxelas, quer indirectamente por verbas orçamentais
libertas pelas anteriores.
Foi
assim que muitas vilas e aldeias tiveram finalmente o seu acesso asfaltado, a
sua ponte ou os seus esgotos eternamente adiados, que muitas regiões tiveram a
sua via rápida, outras mesmo o seu troço de auto-estrada, que umas quantas
cidades tiveram hospital ou escola superior, muitas empresas a sua máquina
nova, muitos empresários o seu carro último modelo, muitos trabalhadores e desempregados
o seu cursozito de formação, verdadeiro ou fictício. Isto sem falar naquelas
“pequenas coisas” que enchem o coração de muito mais gente do que se possa
imaginar: a bandeira azul na “sua” praia, a placa “europeia” no automóvel, o
passaporte europeu. Daí que as sondagens mostrem as elevadas convicções
europeias “dos portugueses”. Daí que os inquéritos a empresários dêem sempre
uma larga maioria de respostas favoráveis à integração europeia. Daí que o
cavaquismo, que tem a mesma idade que a integração, lhe deva uma boa parte dos
seus trunfos, e triunfos, eleitorais.
Deve
a Europa comunitária “aprofundar” o seu processo de União interna antes de se
“alargar” a outros países, e quais, ou deve fazer o inverso, ou ambas as coisas
em simultâneo? Deve a Europa comunitária caminhar decididamente para um
federalismo (um Estado europeu, um poder supranacional), ou manterem-se ainda
por largo tempo a maioria dos poderes soberanos nos Estados-membros? Pode a Europa comunitária fazer alguma
coisa, e o quê, para ser mais competitiva nos mercados mundiais? E para, de
algum modo, “diluir” a inevitável hegemonia alemã? E para deter os movimentos
xenófobos e racistas em crescendo,
sabendo-se que, por meras razões económicas (se outras não houvesse!) uma
Europa em franco envelhecimento necessitará de fortes influxos de imigração? E
a adopção de uma moeda única, que efeitos irá trazer? E a reforma da Política
Agrícola Comum? Enfim, que deve e pode fazer a Europa Comunitária pelos
esfomeados do 3º Mundo, a começar pelos do continente africano, que de uma
ponta à outra colonizou e espoliou?
Muitas
destas grandes questões (para além de tantas outras) afectarão por certo mais
Portugal do que os dinheiros que continuarão a vir, mesmo depois de 1992. E são essas que ninguém discute. Mas,
vistas bem as coisas, haverá para isso, em definitivo, uma excelente razão:
quem acredita que Portugal, onde já se interiorizou a dependência e o espírito
de “assistido”, a começar pelos governantes, possa verdadeiramente influenciar
as decisões de fundo sobre cada uma dessas matérias? Já não será mau se se
obtiver mais uns quinze anitos para ir dando dinheiro aos têxteis, outro tanto
para ir calando os agricultores, etc. Depois se verá!
2.
Peguemos agora numa questão muito concreta: a da “convergência”, uma das palavras-chave da reunião de Maastricht.
Segundo um reputado jornal britânico, esse conceito significa que, ao longo da
década, os países se aproximarão por forma a constituir um “grupo de 12
economias ricas, fortemente integradas, com altas taxas de crescimento, baixa
inflação e orçamentos praticamente equilibrados”. Na realidade, não é bem isso.
Os cinco “indicadores de convergência” adoptados têm em vista, no essencial,
avaliar (em 1986, depois em 1999) quais os países que, nessas datas, estarão em
condições de adoptar a moeda única. São
critérios monetário-financeiros: baixa inflação, baixas taxas de juro,
baixo défice orçamental (menos de 3% do PIB), baixa dívida pública (menos de
60% do PIB), estabilidade monetária. Competirá aos governos aplicar políticas
visando esses objectivos, mas é óbvio
que nem todos os países conseguirão atingi-los sem elevados custos económico-sociais,
sobretudo os mais “desequilibrados” (Portugal, Grécia, Espanha e Itália).
Daí que se tenha igualmente proclamado a
“coesão”, ou seja a transferência de fundos dos países mais ricos para os mais
necessitados, de forma a que as “acções estruturais” compensem tais custos.
Vejamos
o caso português. Depois da Grécia, é o país com mais altas taxas de inflação e
de juros. Quanto à política cambial, o Banco de Portugal praticamente perdeu o
seu controlo, com o afluxo de capitais estrangeiros, que forçaram a valorização
do escudo (penalizando fortemente a nossa competitividade industrial: caso dos
têxteis, por exemplo). Sucede que os objectivos de inflação e de taxas de juro
são contraditórios, se se quiser, como até agora, combater a inflação refreando
a procura, através de baixos salários e alto custo do capital. É por isso que os vultuosos fundos vindos
da Comunidade pouco efeito tiveram na modernização industrial. Os
investidores, nacionais e estrangeiros, continuarão a preferir indústrias
intensivas em mão-de-obra barata, aliás as mais ajustadas ao nosso baixo perfil
educacional e de formação. Por outro lado a evolução quer na agricultura, quer
nas indústrias tradicionais (em particular nos têxteis), tenderá a “desocupar”
mão-de-obra pouco qualificada, logo a aumentar o desemprego (indicador que não consta da “convergência”, pelo que
poderá aumentar sem limites), o que ajudará a manter baixos níveis
salariais. Isto é, as condições de
não-modernização ver-se-ão reforçadas.
Mas
restam algumas importantes incógnitas. Com a liberalização dos movimentos de
capitais, poder-se-á obter crédito mais barato no estrangeiro, o que contrariará
a “batalha” contra a inflação, o mesmo sucedendo se, com a liberalização dos
movimentos de pessoas, houver uma nova vaga de emigração de trabalhadores,
pressionando no sentido de salários mais altos. Poderiam ser factores de
“modernização”, mas ameaçariam a “convergência”. Outras incógnitas que poderão
perturbar todos os cálculos: haverá um novo surto de emigração para Angola e
Moçambique, se as coisas por lá correrem bem? Haverá um retorno maciço de
portugueses da África do Sul, se as coisas por lá correrem mal? E imigração
proveniente do Norte de África (Marrocos, por ex.)?
Se as incógnitas são muitas,
algumas coisas são certas: A primeira será que não é apenas com dinheiro que a estrutura económica de um país se
conserta em meia dúzia de anos, embora ao dinheiro possa continuar a calar
muitas bocas.
A
segunda será a de que a probabilidade de cumprir até 1999 as metas da “convergência”
são escassas, mas ainda que isso fosse
possível, não será uma “economia rica” que lá vai chegar, mas apenas, e
como sempre, uma economia débil e dependente – que, quando muito, se terá
aproximado dos elevados níveis de desemprego da Comunidade. Nada sugere que uma
modernização sensível seja possível – e, de qualquer modo, nem é coisa que, no
essencial, possa ser feito pelos empresários nacionais. Pelo contrário, não é
de excluir que as condições em Angola e Moçambique venham dar um novo alento às
exportações de produtos nacionais locais – o que reforçaria um reforço dos
sectores menos “modernos” da indústria portuguesa. Tal como os nossos emigrantes vão ocupar na Europa postos de
trabalho que os europeus rejeitam, assim Portugal também continuaria a ser o
produtor de bens de baixa qualidade e sofisticação, que a Europa já não produz:
uma espécie de “reserva índia” da CEE, folclórica, simpática e baratíssima para
os turistas. Os arautas da nossa “vocação atlântica” teriam novos argumentos
pelo seu lado...
3. A “gestão
político-ideológica” da integração europeia segue os passos da “convergência”,
isto é, só se preocupa com o superficial, com as aparências. A “filosofia” é
simples: Portugal “não se vai deixar ficar para trás”, já ultrapassou a Grécia
e está a crescer mais rápido que a “Europa”, “se fomos capazes de descobrir
meio mundo, também o seremos de apanhar os países mais desenvolvidos”, “estamos
a viver a época de ouro do nosso desenvolvimento económico”, etc. Pode a respeitável revista “Exame” calcular
que, a manter-se este ritmo de recuperação (e era preciso que mantivesse...)
“Portugal deverá atingir o rendimento médio das Comunidades Europeias cerca do
ano 2040”. Poderá constatar-se que o rendimento do trabalho tem vindo
regularmente a decrescer em percentagem do rendimento nacional. Que os
indicadores de nível de vida se mantêm a anos-luz dos europeus, como o nível
educacional, o da qualificação da mão-de-obra, o da investigação científica e
tecnológica – coisas que não se alteram radicalmente em meia dúzia de anos.
Poderá a nossa dependência estar a crescer a ritmo ainda maior do que o produto
(e não apenas na área económica). Que importa? Tal como Sines devia ter sido o
símbolo da “modernização” marcelista – e acabou, como se sabe, vazio de indústrias
-, o cavaquismo inventou o Centro Cultural de Belém para servir de símbolo do
“Portugal europeu”, moderno e empreendedor (e também ele anda vazio das
reuniões para que supostamente foi feito, e arrisca-se a ficar vazio de
“cultura”, ou não seja, simbolicamente, seu gestor um antigo censor marcelista,
e seu patrono o governo mais “inculto” que teremos tido).
Ser moderno
e europeu é então isso: o primeiro-ministro ter os seus “estaleiros” (como, em
França, os de Mitterrand), Lisboa ser capital cultural europeia (como este ano é
Madrid) e ter a sua Exposição Internacional (como este ano tem Sevilha), e por
aí adiante, incluindo talvez um Campeonato da Europa de futebol. Julgávamos que era uma melhoria substancial
nas condições de vida, acabar com bairros de lata, pobreza e trabalho infantil,
melhor educação, melhor saúde, sectores produtivos mais sólidos e serviços mais
eficazes – mas não, em tudo isto continuaremos na cauda, taco a taco com os
gregos.
Quem se
terá, aliás, dado ao trabalho de apreciar o caso da Irlanda, já com vinte anos
de integração europeia, e que praticamente ainda não conseguiu aproximar-se do
“pelotão da frente” desde então: segundo dados do Banco Mundial, o seu produto per capita aproximou-se muito
ligeiramente do inglês, mas afastou-se em igual proporção do francês, do
alemão, e do conjunto dos 19 países mais industrializados do mundo. Não lhe
adiantou nada ter sido já duas ou três vezes “presidente da Comunidade”, como
Portugal é agora... nem também o facto de já cumprir neste momento com 3 dos 5
“critérios de convergência”, o que prova
bem o que isso tem que ver com “economia real”.
A fechar:
andam por aí uns sociólogos a dizer que a “sociedade portuguesa” acuso claros
sinais de modernização nos últimos anos. Que a juventude portuguesa vai muito
mais ao estrangeiro e que veste como qualquer jovem europeu, mesmo a de Viseu
ou Bragança – o que é verdade. Que esses mesmos jovens são muito mais
competitivos do que eram os seus pais, e já nem sequer passam os pontos aos
amigos nos exames – o que também talvez seja, mas é capaz de ter sobretudo que
ver com numerus clausus. Que o
crescimento do sector de Serviços é um óbvio sinal no bom sentido – do que já
duvido. Chamem-me marxista empedernido, mas
continuo a considerar que são os sectores produtivos os que verdadeiramente
geram “riqueza”. E aí, limitamo-nos a aguardar os investimentos
estrangeiros (quando não a pagar fortunas para que por cá se instalem). O mais
recente e badalado foi uma grande fábrica de batatas fritas. Pouco encorajante.
Ainda não é desta que vamos competir com os japoneses...